Verbete organizado
por:

Constância Lima Duarte

 



Nísia Floresta


Textos escolhidos:

 

A Lágrima de um Caeté

 

Lá quando no Ocidente o sol havia

Seus raios mergulhado, e a noite triste

Denso ebânico véu já começava

Vagarosa a estender por sobre a terra;

Pelas margens do fresco Beberibe,

Em seus mais melancólicos lugares,

Azados para a dor de quem se apraz

Sobre a dor meditar que a Pátria enluta!

Vagava solitário um vulto de homem,

De quando em quando ao céu levando os olhos

Sobre a terra depois triste os volvendo...

Não lhe cingia a fronte um diadema,

Insígnia de opressor da humanidade...

Armas não empunhava, que os tiranos

Inventaram cruéis, e sob as quais

Sucumbe o rijo peito, vence o inerte,

Mata do fraco a bala o corajoso,

Mas deste ao pulso forte aquele foge...

Caia-lhe dos ombros sombreados

Por negra espessa nuvem de cabelos,

Arco e cheio carcaz de simples flechas:

Adornavam-lhe o corpo lindas penas

Pendentes da cintura, as pontas suas

Seus joelhos beijavam musculosos

Em seu rosto expansivo não se viam

Os gestos, as momices, que contrai

A composta infiel fisionomia

Desses seres do mundo social,

Que devorados uns de paixões feras,

No vício mergulhados falam outros

Altivos da virtude, que postergam

De Deus os sãos preceitos quebrantando!

Orgulhosos depois... ostentar ousam

De homem civilizado o nome, a honra!...

(...)

Era um homem sem máscara, enriquecido

Não do ouro roubado aos iguais seus,

Nem de míseros africanos d'além-mar,

Às plagas brasileiras arrastados

Por sedenta ambição, por crime atroz!

Nem de empregos que impudentes vendem,

A honra traficando! o mesmo amor!!

Mas uma alma, de vícios não manchada,

Enriquecida tinha das virtudes

Que valem muito mais que esses tesouros.

Era da natureza o filho altivo,

Tão simples como ela, nela achando

Toda a sua riqueza, o seu bem todo...

O bravo, o destemido, o grão selvagem,

O Brasileiro era... - era um Caeté! -

Era um Caeté, que vagava

Na terra que Deus lhe deu,

Onde Pátria, esposa e filhos

Ele embalde defendeu!...

(...)

Ó terra de meus pais, ó Pátria minha!

Que seus restos guardando, viste de outros

Longo tempo a bravura disputar

Ao feroz estrangeiro a Pátria nossa,

A nossa liberdade, os frutos seus!...

Recolhe o pranto meu, quando dispersos

Pelas vastas florestas tristes vagam

Os poucos filhos teus à morte escapos,

Ao jugo de tiranos opressores,

Que em nome do piedoso céu vieram

Tirar-nos estes bens que o céu nos dera!

As esposas, a filha, a paz roubar-nos!...

Trazendo d' além-mar as leis, os vícios,

Nossas leis e costumes postergaram!

Por nossos costumes singelos e simples

Em troco nos deram a fraude, a mentira.

De bárbaros nos dando o nome, que deles

Na antiga e moderna História se tira.

(...)

(A Lágrima de um Caeté, Rio de Janeiro, 1849).

 

Opúsculo Humanitário

I.

Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o brado - emancipação da mulher - , nossa débil voz se levanta na capital do Império de Santa Cruz, clamando: educai as mulheres!

Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que vos dizeis liberal! Onde está a doação mais importante dessa civilização, desse liberalismo?

Em todos os tempos, e em todas as nações do mundo, a educação da mulher foi sempre um dos mais salientes característicos da civilização dos povos. Na Ásia, esse berço maravilhoso do gênero humano e da filosofia, a mulher sempre foi considerada como um instrumento do prazer material do homem, ou como sua mais submissa escrava; assim, os seus povos, mesmo aqueles que atingiram ao mais alto grau de glória, tais como os babilônios, ostentando aos olhos das antigas gerações suas admiráveis muralhas, seus suspensos e soberbos jardins, suas colunatas de pórfiro, seus templos e jaspe, com zimbórios de pedras preciosas elevando-se às nuvens, obras que até hoje não têm podido ser imitadas, esses povos tão poderosos, dizemos, permaneceram sempre em profunda ignorância dessa civilização que só podia ser transmitida ao mundo pela emancipação da mulher, não conforme o filosofismo das socialistas, mas como a compreendeu a sabedoria divina, elevando até a si a mulher, quando encarnou em seu seio o Redentor do mundo.

As Déboras, as Semíramis, as Judites se mostraram embalde, atestando, aquela, a graça de que a tocara deus, permitindo-lhe revelar aos homens alguns de seus mistérios; estas, uma razão esclarecida, uma coragem rara, que provavam já então não ser a mulher somente destinada a guardar os rebanhos, a preparar a comida, e a dar à luz a sua prosperidade.

(Opúsculo Humanitário. São Paulo: Cortez , 1989)

 

 

Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens

Cap. I

Que caso os homens fazem das mulheres, e se é com justiça

Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o que sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos de acordo em dizer que nós nascemos para seu uso, que não somos próprias, senão para procriar e nutrir nossos filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer e aprazer aos nossos amos, isto é, a eles homens. Tudo isto é admirável e mesmo um muçulmano não poderá avançar mais no meio de um serralho de escravas.

Entretanto eu não posso considerar este raciocínio senão como grandes palavras, expressões ridículas e empoladas, que é mais fácil dizer do que provar. Os homens parecem concluir que todas as outras criaturas foram formadas para eles, ao mesmo tempo em que eles não foram criados senão quando tudo isto se achava disposto para seu uso. Eu não me proporia a fazer ver a futilidade deste raciocínio; mas concedendo que ele tenha alguma ponderação, estou certa que antes provará que os homens foram criados para o nosso uso, do que nós para o deles.

É verdade que o emprego de nutrir as crianças nos pertence, assim como a eles unicamente pertence o de gerá-los; se este último lhes dá algum direito à estima e respeito públicos, o primeiro nos deve merecer uma porção igual, pois que o concurso imediato dos dois sexos é tão essencialmente necessário à propagação da espécie humana, que um será absolutamente inútil sem o outro.

Que direito pois têm eles de nos desprezar e pretender uma superioridade sobre nós, por um exercício que eles partilham igualmente conosco? Todos sabem, nem se pode negar, que os homens olham com desprezo para o emprego de criar filhos e que é isto, às suas vistas, uma função baixa e desprezível; mas se consultassem a Natureza nesta parte, sentiriam sem que fosse preciso dizer-lhes, que não há no Estado Social um emprego que mereça mais honra, confiança e recompensa. Basta atender às vantagens que resultam ao gênero humano para convir-se nisto; eu não sei se até por esta razão unicamente, as mulheres não mereciam o primeiro lugar na sociedade civil.

Qual foi o fim para que os homens se reuniram em sociedade, senão para terem suas vidas mais seguras e pacificamente gozarem tudo que lhes apraz?

Todos aqueles, pois, que mais contribuem a esta vantagem pública, devem por isso obter maior porção de estima pública. Ora, as mulheres, encarregando-se generosamente e sem interesse, do cuidado de educar os homens na sua infância, são as que mais contribuem para esta vantagem, logo são elas que merecem um maior grau de estima e respeito públicos. Partindo deste princípio é que se olham os príncipes como as primeiras pessoas do Estado. Nesta qualidade, ou grau de elevação, se lhes conferem as principais honras; porque supõe-se ao menos que eles se sobrecarregam de grandes cuidados, vigílias e inquietações, que exige a prosperidade do bem público. Da mesma sorte tributamos mais ou menos respeito àquelas pessoas que estão abaixo deles e que mais se lhes aproximam, porque as olhamos como pessoas mais úteis à sociedade, segundo partilham mais ou menos as fadigas do serviço público.

É pela mesma razão que preferimos os militares aos literatos; porque os olhamos como um baluarte entre nós e nossos inimigos. Todos concordam em respeitar as pessoas à proporção de sua utilidade; eis pois a medida de seu merecimento. Ora, sendo esta regra aplicável a todas as circunstâncias da vida, por que não devem ter as mulheres, mais que todos, direito à estima pública, contribuindo mais, sem comparação, a seu bem-estar?

Os homens podem absolutamente passar sem Príncipes, Generais, soldados, jurisconsultos, como antigamente e ainda hoje passam os selvagens; mas podem passar sem amas na sua infância? E se por si são incapazes de exercer este importante emprego, não precisam indispensavelmente das mulheres? Em um Estado tranqüilo e bem regido, a maior parte dos homens são inúteis em seus ofícios e inútil toda sua autoridade, mas as mulheres não deixarão jamais de ser necessárias enquanto existirem homens e estes tiverem filhos.(...)

Sem dúvida é preciso que os homens tenham a imaginação bem corrompida para olharem um exercício tão importante, como baixo e desprezível e para lhe recusar toda estima que na realidade merece. Com que liberalidade não se recompensa aquele que consegue domesticar um tigre, um elefante e outros semelhantes animais? E as mulheres, que passam seus belos anos ocupadas em amansar o homem, este animal ainda feroz, não serão pagas senão com desprezo?

Se nos remontarmos à origem desta injusta parcialidade, encontraremos que a única e verdadeira causa do pouco reconhecimento, que se tem aos importantes serviços que as mulheres prestam aos homens, é que eles são comuns e ordinários. Entretanto, seja qual for a recompensa, o prazer que a generosidade de nosso sexo acha em preencher este ofício, basta para que nós o desempenhemos com toda ternura e sem vistas de interesse. Eu não pretendo queixar-me de não recebermos recompensa: seja-me somente permitido dizer, que por sermos mais capazes que os homens em desempenhar este cargo, não se segue que não possamos também desempenhar outro qualquer.

Que personagens singulares! (...) Exigir uma servidão a que eles mesmos não têm coragem de se submeter, de um sexo, que sua vaidade qualifica com o título de - vasos frágeis - , e querer que lhes sirvamos de ludíbrio, nós, a quem eles são obrigados a fazer a corte e atrair em seus laços com as submissões as mais humilhantes! Têm por ventura eles alguns títulos para justificar o direito com que reclamam os nossos serviços, que nós igualmente não tenhamos contra eles? (...) Entretanto, a maior parte de nosso sexo, assaz frágil para se deixar vencer pela piedade, por suas carícias e por seu desespero afetado, não tem encontrado o despojo de sua dissimulação, o engano de sua inocência e de seu bom coração? (...)

Certamente o Céu criou as mulheres para um melhor fim, que para trabalhar em vão toda sua vida. Talvez se me objetará que não é trabalhar inutilmente, uma vez que com isto não fazem mais que preencher o seu tempo; que não tendo sido criadas senão para escravas dos homens, a nossa única obrigação é lhes ser submissas e lhes aprazer; que quando desprezamos outra qualquer coisa, não somos nisso responsáveis, pois que Deus não nos outorgou outros talentos. Mas como tenho dito, e farei ver mais adiante, isto reduz-se a ter como certeza o que ainda está em questão e supor o que deveria, porém que não pode ser provado. (...)

(Direitos das mulheres e injustiça dos homens, São Paulo: Cortez , p. 35-44)