Lá quando no Ocidente o sol havia
Seus raios mergulhado, e a noite triste
Denso ebânico véu já começava
Vagarosa a estender por sobre a terra;
Pelas margens do fresco Beberibe,
Em seus mais melancólicos lugares,
Azados para a dor de quem se apraz
Sobre a dor meditar que a Pátria enluta!
Vagava solitário um vulto de homem,
De quando em quando ao céu levando os olhos
Sobre a terra depois triste os volvendo...
Não lhe cingia a fronte um diadema,
Insígnia de opressor da humanidade...
Armas não empunhava, que os tiranos
Inventaram cruéis, e sob as quais
Sucumbe o rijo peito, vence o inerte,
Mata do fraco a bala o corajoso,
Mas deste ao pulso forte aquele foge...
Caia-lhe dos ombros sombreados
Por negra espessa nuvem de cabelos,
Arco e cheio carcaz de simples flechas:
Adornavam-lhe o corpo lindas penas
Pendentes da cintura, as pontas suas
Seus joelhos beijavam musculosos
Em seu rosto expansivo não se viam
Os gestos, as momices, que contrai
A composta infiel fisionomia
Desses seres do mundo social,
Que devorados uns de paixões feras,
No vício mergulhados falam outros
Altivos da virtude, que postergam
De Deus os sãos preceitos quebrantando!
Orgulhosos depois... ostentar ousam
De homem civilizado o nome, a honra!...
(...)
Era um homem sem máscara, enriquecido
Não do ouro roubado aos iguais seus,
Nem de míseros africanos d'além-mar,
Às plagas brasileiras arrastados
Por sedenta ambição, por crime atroz!
Nem de empregos que impudentes vendem,
A honra traficando! o mesmo amor!!
Mas uma alma, de vícios não manchada,
Enriquecida tinha das virtudes
Que valem muito mais que esses tesouros.
Era da natureza o filho altivo,
Tão simples como ela, nela achando
Toda a sua riqueza, o seu bem todo...
O bravo, o destemido, o grão selvagem,
O Brasileiro era... - era um Caeté! -
Era um Caeté, que vagava
Na terra que Deus lhe deu,
Onde Pátria, esposa e filhos
Ele embalde defendeu!...
(...)
Ó terra de meus pais, ó Pátria minha!
Que seus restos guardando, viste de outros
Longo tempo a bravura disputar
Ao feroz estrangeiro a Pátria nossa,
A nossa liberdade, os frutos seus!...
Recolhe o pranto meu, quando dispersos
Pelas vastas florestas tristes vagam
Os poucos filhos teus à morte escapos,
Ao jugo de tiranos opressores,
Que em nome do piedoso céu vieram
Tirar-nos estes bens que o céu nos dera!
As esposas, a filha, a paz roubar-nos!...
Trazendo d' além-mar as leis, os vícios,
Nossas leis e costumes postergaram!
Por nossos costumes singelos e simples
Em troco nos deram a fraude, a mentira.
De bárbaros nos dando o nome, que deles
Na antiga e moderna História se tira.
(...)
(A Lágrima de um Caeté, Rio
de Janeiro, 1849).
Opúsculo Humanitário
I.
Enquanto pelo velho e novo mundo vai ressoando o brado - emancipação
da mulher - , nossa débil voz se levanta na capital do
Império de Santa Cruz, clamando: educai as mulheres!
Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que vos
dizeis liberal! Onde está a doação mais importante
dessa civilização, desse liberalismo?
Em todos os tempos, e em todas as nações do mundo,
a educação da mulher foi sempre um dos mais salientes
característicos da civilização dos povos.
Na Ásia, esse berço maravilhoso do gênero
humano e da filosofia, a mulher sempre foi considerada como um
instrumento do prazer material do homem, ou como sua mais submissa
escrava; assim, os seus povos, mesmo aqueles que atingiram ao
mais alto grau de glória, tais como os babilônios,
ostentando aos olhos das antigas gerações suas admiráveis
muralhas, seus suspensos e soberbos jardins, suas colunatas de
pórfiro, seus templos e jaspe, com zimbórios de
pedras preciosas elevando-se às nuvens, obras que até
hoje não têm podido ser imitadas, esses povos tão
poderosos, dizemos, permaneceram sempre em profunda ignorância
dessa civilização que só podia ser transmitida
ao mundo pela emancipação da mulher, não
conforme o filosofismo das socialistas, mas como a compreendeu
a sabedoria divina, elevando até a si a mulher, quando
encarnou em seu seio o Redentor do mundo.
As Déboras, as Semíramis, as Judites se mostraram
embalde, atestando, aquela, a graça de que a tocara deus,
permitindo-lhe revelar aos homens alguns de seus mistérios;
estas, uma razão esclarecida, uma coragem rara, que provavam
já então não ser a mulher somente destinada
a guardar os rebanhos, a preparar a comida, e a dar à luz
a sua prosperidade.
(Opúsculo Humanitário. São
Paulo: Cortez , 1989)
Direitos das Mulheres e Injustiça dos
Homens
Cap. I
Que caso os homens fazem das mulheres, e se é com justiça
Se cada homem, em particular, fosse obrigado a declarar o que
sente a respeito de nosso sexo, encontraríamos todos de
acordo em dizer que nós nascemos para seu uso, que não
somos próprias, senão para procriar e nutrir nossos
filhos na infância, reger uma casa, servir, obedecer e aprazer
aos nossos amos, isto é, a eles homens. Tudo isto é
admirável e mesmo um muçulmano não poderá
avançar mais no meio de um serralho de escravas.
Entretanto eu não posso considerar este raciocínio
senão como grandes palavras, expressões ridículas
e empoladas, que é mais fácil dizer do que provar.
Os homens parecem concluir que todas as outras criaturas foram
formadas para eles, ao mesmo tempo em que eles não foram
criados senão quando tudo isto se achava disposto para
seu uso. Eu não me proporia a fazer ver a futilidade deste
raciocínio; mas concedendo que ele tenha alguma ponderação,
estou certa que antes provará que os homens foram criados
para o nosso uso, do que nós para o deles.
É verdade que o emprego de nutrir as crianças nos
pertence, assim como a eles unicamente pertence o de gerá-los;
se este último lhes dá algum direito à estima
e respeito públicos, o primeiro nos deve merecer uma porção
igual, pois que o concurso imediato dos dois sexos é tão
essencialmente necessário à propagação
da espécie humana, que um será absolutamente inútil
sem o outro.
Que direito pois têm eles de nos desprezar e pretender
uma superioridade sobre nós, por um exercício que
eles partilham igualmente conosco? Todos sabem, nem se pode negar,
que os homens olham com desprezo para o emprego de criar filhos
e que é isto, às suas vistas, uma função
baixa e desprezível; mas se consultassem a Natureza nesta
parte, sentiriam sem que fosse preciso dizer-lhes, que não
há no Estado Social um emprego que mereça mais honra,
confiança e recompensa. Basta atender às vantagens
que resultam ao gênero humano para convir-se nisto; eu não
sei se até por esta razão unicamente, as mulheres
não mereciam o primeiro lugar na sociedade civil.
Qual foi o fim para que os homens se reuniram em sociedade, senão
para terem suas vidas mais seguras e pacificamente gozarem tudo
que lhes apraz?
Todos aqueles, pois, que mais contribuem a esta vantagem pública,
devem por isso obter maior porção de estima pública.
Ora, as mulheres, encarregando-se generosamente e sem interesse,
do cuidado de educar os homens na sua infância, são
as que mais contribuem para esta vantagem, logo são elas
que merecem um maior grau de estima e respeito públicos.
Partindo deste princípio é que se olham os príncipes
como as primeiras pessoas do Estado. Nesta qualidade, ou grau
de elevação, se lhes conferem as principais honras;
porque supõe-se ao menos que eles se sobrecarregam de grandes
cuidados, vigílias e inquietações, que exige
a prosperidade do bem público. Da mesma sorte tributamos
mais ou menos respeito àquelas pessoas que estão
abaixo deles e que mais se lhes aproximam, porque as olhamos como
pessoas mais úteis à sociedade, segundo partilham
mais ou menos as fadigas do serviço público.
É pela mesma razão que preferimos os militares
aos literatos; porque os olhamos como um baluarte entre nós
e nossos inimigos. Todos concordam em respeitar as pessoas à
proporção de sua utilidade; eis pois a medida de
seu merecimento. Ora, sendo esta regra aplicável a todas
as circunstâncias da vida, por que não devem ter
as mulheres, mais que todos, direito à estima pública,
contribuindo mais, sem comparação, a seu bem-estar?
Os homens podem absolutamente passar sem Príncipes, Generais,
soldados, jurisconsultos, como antigamente e ainda hoje passam
os selvagens; mas podem passar sem amas na sua infância?
E se por si são incapazes de exercer este importante emprego,
não precisam indispensavelmente das mulheres? Em um Estado
tranqüilo e bem regido, a maior parte dos homens são
inúteis em seus ofícios e inútil toda sua
autoridade, mas as mulheres não deixarão jamais
de ser necessárias enquanto existirem homens e estes tiverem
filhos.(...)
Sem dúvida é preciso que os homens tenham a imaginação
bem corrompida para olharem um exercício tão importante,
como baixo e desprezível e para lhe recusar toda estima
que na realidade merece. Com que liberalidade não se recompensa
aquele que consegue domesticar um tigre, um elefante e outros
semelhantes animais? E as mulheres, que passam seus belos anos
ocupadas em amansar o homem, este animal ainda feroz, não
serão pagas senão com desprezo?
Se nos remontarmos à origem desta injusta parcialidade,
encontraremos que a única e verdadeira causa do pouco reconhecimento,
que se tem aos importantes serviços que as mulheres prestam
aos homens, é que eles são comuns e ordinários.
Entretanto, seja qual for a recompensa, o prazer que a generosidade
de nosso sexo acha em preencher este ofício, basta para
que nós o desempenhemos com toda ternura e sem vistas de
interesse. Eu não pretendo queixar-me de não recebermos
recompensa: seja-me somente permitido dizer, que por sermos mais
capazes que os homens em desempenhar este cargo, não se
segue que não possamos também desempenhar outro
qualquer.
Que personagens singulares! (...) Exigir uma servidão
a que eles mesmos não têm coragem de se submeter,
de um sexo, que sua vaidade qualifica com o título de -
vasos frágeis - , e querer que lhes sirvamos de ludíbrio,
nós, a quem eles são obrigados a fazer a corte e
atrair em seus laços com as submissões as mais humilhantes!
Têm por ventura eles alguns títulos para justificar
o direito com que reclamam os nossos serviços, que nós
igualmente não tenhamos contra eles? (...) Entretanto,
a maior parte de nosso sexo, assaz frágil para se deixar
vencer pela piedade, por suas carícias e por seu desespero
afetado, não tem encontrado o despojo de sua dissimulação,
o engano de sua inocência e de seu bom coração?
(...)
Certamente o Céu criou as mulheres para um melhor fim,
que para trabalhar em vão toda sua vida. Talvez se me objetará
que não é trabalhar inutilmente, uma vez que com
isto não fazem mais que preencher o seu tempo; que não
tendo sido criadas senão para escravas dos homens, a nossa
única obrigação é lhes ser submissas
e lhes aprazer; que quando desprezamos outra qualquer coisa, não
somos nisso responsáveis, pois que Deus não nos
outorgou outros talentos. Mas como tenho dito, e farei ver mais
adiante, isto reduz-se a ter como certeza o que ainda está
em questão e supor o que deveria, porém que não
pode ser provado. (...)
(Direitos das mulheres e injustiça dos
homens, São Paulo: Cortez , p. 35-44)
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