Madalena
Antunes

Textos:
Capítulo
I - Reminiscências
No
outono da vida, recordar a infância é abrir pontos
de luz na estrada abandonada do passado. Guardo com devoção
a lembrança do meu primeiro dia de escola.
Maio!
Ainda hoje o contemplo, no milagre da imaginação,
no pólen de suas flores, na renovação de
suas messes, sentindo em tudo a poeira das desilusões,
polvilhando a trilha do passado.
Estávamos
no Oiteiro. A folhinha pregada à parede da vasta sala de
jantar marcava 25 de maio de 1887, dia do meu aniversário.
Eu
fazia 7 anos de idade. Logo pela manhã as camponesas mimosearam-me
com flores que eu pus no altar de Nossa Senhora, improvisado no
alpendre de nossa velha casa de campo, de biqueira e janelões
envidraçados. Mãos piedosas adornavam de leques
de palmeira e ramos verdes de estefanotes brancos, as paredes
da capelinha rústica, em honra do santo mês mariano.
As crianças, à hora do terço, levavam arcos
de boninas enfiadas em palitos de coqueiro.
As
camponesas sorriam para Nossa Senhora, e ela sorria para as camponesas.
"Feliz
é o simples que sabe ser como o ar, a árvore, o
rio: simples, mas simples sem saber..."
O
encanto dos jardins do Oiteiro resumia-se em sua profusão
de flores, porque os canteiros não tinham estética.
Eram orlados de fundos de garrafas e pedrinhas do sertão.
As roseiras transbordavam de latas de querosene e os jasmineiros
cresciam pujantes, beirando os velhos muros, gretados, da Casa
Grande.
Pelos
vidros partidos das varandas, penetravam os "mimos do céu",
delicada trepadeira de pétalas miudinhas, que brotava do
solo como róseas borboletas de asas despedaçadas,
rolando pelo chão.
Os
rosedás – miosótis brancos – embalsamavam o ar,
paralelos aos bogarís de folhas largas, delicadamente enrolados,
quais brancos caracóis. As angélicas afloravam de
varetas verdes, que se inclinavam salpicadas de estrelinhas brancas,
como o cajado de São José.
E
os lilases, que mereceram de D´Annunzio um poema? Lilás!
Ainda hoje te bendigo:
Tu
que falas na ausência
De
alguém que eu não esqueço
És
a cor mais bonita que eu conheço,
És
a cor da saudade!
Recordas-me
o Oiteiro e ele a minha infância, fonte perene na qual cada
um procura, vez por outra, nos momentos de desânimo, aquela
paz benfazeja que a criança desperdiça, o homem
ambiciona e os velhos recordam. . .
Atraía-me
o culto às flores. Adorando-as, sentia-me feliz. Ungia-me
de vibrações estranhas, extasiando-me diante do
belo. Era a promessa da puberdade intelectual e humana.
Apertava
as rosas ao peito, sem lhes sentir os espinhos. Mas, maltratava
os cravos, lânguidos e sedosos. Talvez por não me
picarem...
Trincava-os,
destruindo as compridas hastes. E os pobres cravos rolavam pelo
chão, alvos e crespos, como cálices sem pé,
derramando odores.
Virgínia
Vitorino já dizia: "A vida humana, seja ou não
tranqüila, profunda ou não, só poderá
senti-la quem a sentir apaixonadamente."
No
pátio de areia fofa, ao lado esquerdo de nossa velha casa
de campo, crescia, um oitizeiro, que dava sombra às crianças
e abrigava os xexéus de peito amarelo e "encontros"
vermelhos.
Nas
belas manhãs de sol, reuniam-se aos outros pássaros
numa orquestração de notas maravilhosas. As grossas
raízes saídas do tronco do Oitizeiro rasgavam a
terra contornando as areias; cinzentas e lustrosas, pareciam velhos
polvos lodosos sobre algas marinhas, espreguiçando-se ao
sol.
(. . . )
(Oiteiro, p. 15-17)
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