Verbete organizado
por:

Constância Lima Duarte e Diva Cunha

 



Zila da Costa Mamede


Textos:

 

Retrato de João Cabral de Melo Neto
O gesto de tirar os óculos, de apoiar a testa na mão

(como para sustar a explosão das idéias e interiorizar-se)

O ricto de autocomiseração (ou zombaria):

apertar os lábios num sorriso seco e horizontal de máscara

O medo do demônio e dos infernos

e nenhuma convivência com um Deus que seja

O pavor e o pudor: onipotência e técnica

de preservar a intimidade dolorosa

A neurose da aspirina, do relógio e do tempo

como se o instante último fosse necessariamente aquele.

O desejo de amor, a recusa do amor, o pecado no amor

e a casuística fidelidade ao próprio amor

A missão, a omissão e a ousadia da distância

na rotineira ausência, intempestiva presença

O degredo e o segredo: na tortura

pela aspereza da dor invulnerável.

A necessidade de confirmar-se se "compreende"

o debate, aflição, a lucidez

A dialética e a disciplina do poeta

e o preconceito atávico da casta

O compromisso ascético com a palavra:

salvação e danação, perdição e deificação.

 

Retrato

Me lembrava da menina

escavacando o chão agreste,

me lembrava do menino

carregando melancias.

Em que terras desembocam

esses talos de crianças

mais finos que as maravilhas,

mais fortes que a ventania?

Dois pés descobriram casa,

multiplicaram-se em hastes

— são cabeleiras de trigo

dos moinhos de Van-Gogh.

A sobra dos dois irmãos

repartiu-se entre os veleiros:

seu tronco desarvorado

virou estrelas no mar.