Verbete organizado
por:

Zahidé L. Muzart

 



Ana Luísa de Azevedo Castro

 

Textos:

EXCERTOS

D. Narcisa de Vilar

Prólogo

No belo arquipélago da barra de S. Francisco Xavier, há uma ilhota chamada a — ilha de Mel. Não sei o motivo deste nome que a tradição tem conservado até nossos dias, o que sei é que está até hoje inculta e inabitada; alguns pescadores a visitam quando não têm outro ponto mais fácil de descanso, e os pássaros escolhem nela os lugares onde fazem os seus ninhos. Ninguém se aproxima dela à noite, porque dizem que a ilha é mal-assombrada, e muitos afirmam terem ali visto visões medonhas, capazes de matar de susto a uma dúzia daqueles bons lavradores.

Uma noite de inverno, na minha infância, achava-me com minha família na Ponta Grossa, onde estávamos hospedadas em casa de umas gentes as mais antigas do lugar. Ao pé de um bom fogo, cujo calor saboreávamos com delícias, pelo frio que fazia, e onde se assavam carás e batatas roxas que eu comia com delicioso prazer, eu ouvia também as histórias que me contavam duas índias velhas, com seu falar pausado e cadencioso, com essa algaravia única, em que se misturam as línguas primitiva e a portuguesa adotada, que tanto me agradava. De vez em quando atiçavam elas as chamas, e tiravam do braseiro, com tenazes de pau, carás e batatas tão bem cozidos como se tivessem sido preparados no forno. Com a viveza própria de meu caráter, eu fazia mil perguntas à tia Simoa e à mãe Micaela, as duas irmãs índias. Nessa noite ouvi muitos fatos interessantes acerca dos Padres Santos que seria longo narrá-los. Porém o que mais me impressionou, e que guardei fielmente na memória, foi uma legenda da ilha do Mel.

— Mãe Micaela, disse eu à mais velha das índias, por que causa ninguém vai à ilha do Mel, e todos dizem ser ela mal-assombrada?

— Ah! Taim, me respondeu ela persignando-se e pulando na sua esteira:ah! ah! mecê quer saber uma história tão feia?! Padre, Filho e Espírito Santo! mecê não há de pregar olhos esta noite. Não, Deus Nosso Senhor me livre de contar-lhe isto.

— Está bem, mãe Micaela, como você se recusa aos meus desejos, voltar-me-ei à tia Simôa, e ela me fará a vontade; além disso, não lhe hei de ensinar as bem-aventuranças, nem lhe hei de ler amanhã a história da Princesa Magalona.

— Um! um! um, Taim! mecê há de fazer tudo isto?... Virgem Maria! Então vou contar-lhe tudo, se mecê tiver medo, eu direi a sua madre que mecê me obrigou: olhe que é uma história do Anhangá!

— Não, boa mãe Micaela, não tenho medo do Anhangá; dê-me mais um cará assado, e comece a sua história.

A boa mãe Micaela, temendo-se talvez de minhas ameaças, não quis incorrer na pena de privar-se do que era para ela um grande prazer, ouvir a leitura desses livros, e obter uma lição religiosa que com tanta fé desejava: e pois começou a sua história do modo por que a vamos expor; porém como nos é impossível referi-la com o tom e termos característicos com que ela nos contou, perdoe-nos o leitor que a substituamos pela nossa linguagem, guardando todavia certas expressões que pertencem inteiramente à narradora.

[...]

 

Discurso

Lido na sessão aniversária da Sociedade Ensaios Literários, no dia 20 de janeiro de 1866.

"Quereis ver a Humanidade reformada? Educai a mulher."

Montesquieu.

Senhores,

No banquete das inteligências não há sexo. A mulher pode também achar nele o seu lugar, se tem forças para penetrar os seus pórticos.

Assim, eu, senhores, protegida com esta verdade, afrontando a timidez do meu sexo, os usos de minha pátria, venho aqui misturar convosco a minha débil voz no sublime festim de que sois convivas.

Eu vos saúdo, dignos membros da Sociedade Ensaios Literários, no 6o. aniversário de vossa instalação. Nobre e sublime idéia, que, no curto espaço de seis anos, tem sido desenvolvida tão poderosamente útil para as letras e artes!

O entusiasmo com que se entrega hoje a mocidade ao culto das letras, é obra vossa. O talento que se escondia nos mistérios da obscuridade, e muitas vezes morria, à míngua de desenvolvimento, acha hoje, em vós, proteção, e vai, em vossas aulas, desenvolver as assombrosas riquezas contidas em sua alma, pela mão do Criador.

Avante, pois, soldados de Minerva, o vosso ânimo e coragem jamais vos fará parar ante a coorte dos impossíveis; falange poderosa vencereis, com a espada da vontade, o séquito de mesquinhez e contrariedades que se levantem em vosso campo, porque vos cerca o sólido baluarte do bem que já haveis construído.

Agora uma palavra para mim. Do humilde estrado de mãe de família, de preceptora, percorro a vista pelo jardim florido da mocidade de meu sexo, e vejo, com dor, que a sua educação não completa ainda os meus desejos. Quantas inteligências, quantos talentos não se amesquinham na vida monótona que entre nós leva a família? A menina que recebeu no colégio noções de grande instrução, é condenada a queimar todo o seu trabalho, sacrifício inaudito da infância, forçada a dar aos livros a atenção que sua boneca exige, ao fogo lento do indiferentismo que lavra no novo círculo em que vai entrar. Um ano depois nada mais lembra-lhe a sua memória: e somente o seu piano, onde ela vai derramar as melodias de sua alma sensível, é o que resta, de todos os frutos colhidos, nesses anos de privações dados ao estudo. É o altar que se levanta no deserto do seu coração, onde o seu espírito está só e quase vazio, no qual a alma vai oferecer seus místicos cantos. Todavia, ainda esse mesmo tem um dia de ser aniquilado na voraz fogueira, onde foram reduzidos às cinzas do esquecimento, os pincéis e os livros: é quando a moça torna-se — esposa e mãe.

Desenvolvei o gosto da literatura entre as senhoras, vós dignos filhos de Pallas: excluí do seio das famílias esse passatempo perigoso dos - romances, - harmonia artificiosa que só deixa na sua passagem fumo empestado. Criai um Club para nós outras, onde cada qual leve uma produção de seu talento, onde a leitura da história, da filosofia e da moral, seja ouvida por vozes de meu sexo. E estai certos, que tendo mais ilustradas, tereis a mocidade preparada para todos os altos acontecimentos da vida, possuindo no vosso lar não pedantes, citando-vos a todos os momentos nomes pomposos de autores; porém companheira ilustrada que leva a consolação e a coragem ao esposo aflito e impressionado pelos desgostos.

Desenvolvei a minha idéia, - eu vo-la entrego.

Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 1866.

D. Ana de Castro.

(Revista Mensal da Sociedade Ensaios Literários, p.297-9).