Duelo
—
Mas enfim, o que tens? Que te fiz eu? Por que me tratas deste
modo?
E
Luísa prostava-se aos pés de seu amante, humilde
e implorativa, esmagando a curva do seu busto delicado nesse corpo
que a evitava, rígido, numa atitude hostil e irreconciliável.
—
Armando!... Armando!... — insistia ela, a princípio doce
e chorosa, mas depois um pouco impaciente... E começou
a sacudi-lo com certa irritação, tentando ler-lhe
o pensamento no olhar duro que se desviava, impenetrável.
Então
Luísa ergueu-se com uma sacudidela brusca de ombros e arremessou
consigo para cima de uma poltrona, onde ficou a dardejar raios
de cólera concentrada sobre o ente enigmático que
a desafiava, sempre mudo e enterrado no seu divã, batendo
impertinentemente com a ponta da bengala no tapete.
E
um silêncio de ódio passou entre os dois amantes
nesse delicioso boudoir, destinado aos ternos conchegos
da intimidade feliz, em que tudo falava baixinho de beijos e carícias
na desordem artística dos trastes e na moleza das almofadas
atiradas aqui e acolá, ao alcance do joelho, que se quisesse
dobrar numa postura de adoração.
Eis,
porém, que Luísa se levanta com impetuosidade, e
a cauda serpentina do seu longo roupão de seda acompanha-lhe
os passos febris pelo aposento, saltando, parando, enroscando-se
pelos móveis, como alguma coisa de vivo e palpitante, que
partilhasse os estremecimentos e as indecisões da forma
feminina de que faz parte. Armando agora segue, com um meio sorriso
que lhe encrespa o lábio, toda essa tortura de que se sente
causa.
—
Luísa!... — grita ele enfim... Ela pára, mas de
longe, com as mãos cruzadas atrás das costas, numa
posição zombeteira e provocante; e por entre os
cílios descidos, num ar interrogativo, deixa cair sobre
o amante todo o peso do mais irônico e implacável
ressentimento. É ele então que se ergue e lentamente
se aproxima, curvando-se para examinar de perto o belo rosto que
há pouco chorou sobre o seu peito e agora o encara com
impassibilidade tão altiva.
Os
olhos de ambos encontram-se, medem-se, penetram-se, mergulham
na alma um do outro e dessa análise se desviam, tristes
e desiludidos. O que leram, santo Deus?... A verdade humana, que
é a eterna solidão de cada criatura, e a inanidade
de todos os esforços que se empregam durante a vida, em
busca da fusão absoluta que jamais, jamais se produz.
Dentro
de si, Luísa pensava: "Tudo isto que aqui está,
foi para ele... Não há neste ninho de amor um objeto
só que não ateste o meu carinhoso empenho de acariciar-lhe
a vista por todos os meios. Estas flores eu as colhi para sorrirem
ao seu gosto artístico.
Estes
quadros, pendurei-os para satisfazer a sua adoração
do belo... Tive-o presente ao dispor os bibelôs desta mesa,
ao preparar a meia-luz desta lâmpada, ao conchegar estes
coxins do sofá onde se deviam trocar os nossos protestos
de amor. E foi para gozar o resultado querido de todos estes preparativos
tão doces, que me perdi por ele e me fechei no apertado
círculo de um único objetivo — a sua paixão,
confiante nas juras e promessas que soube murmurar-me a sua bela
voz de ouro, quando ainda me apetecia o seu desejo de homem.
Hoje,
porém, que me sente toda sua, presa na mão, escrava
da sua vontade, ei-lo que busca pretextos para me dar o menos
que possa da sua existência, contrariado no seu egoísmo;
apenas reclamo o que me foi prometido. Simula então motivos
de irritação e entra-me por aqui amuado e taciturno.
É um mau pagador! É um ingrato! Mas não posso
ainda fugir-lhe porque o amo assim mesmo e não saciei a
sede da sua posse... Mais tarde, porém..."
E
toda a ilusão do sentimento se quebrava nesta reticência
de Luísa, que parecia aceitar a possibilidade de um fim.
Do
seu lado, eis o que dizia Armando consigo:
"Preciso
decididamente defender-me, senão esta Luísa invade-me
a vida, os hábitos e não me consente mais liberdade
alguma de movimentos. Tudo isto aqui é na realidade encantador,
mas sempre, todos os dias, ah! não. Já ela se julga
com o direito de chamar-me, quando eu não venho, e estas
coisas não me agradam. Entretanto não posso também
afastar-me...
Pobre
querida! ela gosta tanto de mim! É uma cegueira. E demais,
demais..."
Armando
parou aqui o seu raciocínio, porque dessa contemplação
muda ia nascendo em ambos um enternecimento suave, uma tristeza,
um como desejo de afogarem num simulacro de felicidade e ternura
toda essa maldita lucidez, que envenenava as suas melhores ilusões.
Luísa
deixou então pender a fronte sobre o ombro do amante, que
a estreitou contra si; e, de repente, num amplexo violento, nervoso,
quase brutal, buscaram eles esmagar nos lábios um do outro
as terríveis verdades que pareciam escapar-se dos próprios
beijos.
—
Enfim! balbuciava Luísa, voltaste a ser para mim o que
eras...
—
Oh! meu grande amor! — repetia Armando.
Os
olhos inquietos de ambos continuavam, porém, a traspassar-se,
desconfiados; e quando o bem-amado saiu e Luísa ficou meditando
à sua janela, engrinaldada de jasmins, como que ouviu,
na escuridão da noite, levantar-se uma voz do silêncio
das coisas — voz cruel, voz desanimadora, que lhe segredava a
confirmação de todas as suas pungentes dúvidas.
Dizia-lhe esse eco do íntimo pensamento, que o amor é
na sua realidade um duelo entre o homem e a mulher, os quais ocultam
sob a recíproca adoração as armas do orgulho,
do egoísmo, do insaciável domínio. Cada amante
quer vencer o outro, na inútil aspiração
de possuir um ente que seja todo e exclusivamente seu; mas, como
esse outro contém em si iguais ambições,
cruzam-se eternamente os floretes, num torneio que só termina
quando um dos combatentes aceita a morna passividade de vencido.
Neste caso, entretanto, o vencedor se aborrece de firmar o cunho
da sua força numa alma inerte e a paixão se extingue
por falta de luta e de alimento.
Cumpre
então aprovar esse duelo que forma o fundo de todo o amor,
sobretudo quando ele une dois seres modernos, complicados e possuídos
do espírito analítico deste fim de século,
que estraga as melhores impressões do sentimento? O que
fazer, porém, da sinceridade que afinal também muitas
vezes existe na alma humana e principalmente feminina! Como conciliar
a necessidade da luta com o desejo de abandono, de avassalamento
e confiança, a que fora tão grato entregar-se a
criatura na paixão? Pois não é cem vezes
preferível amar com simplicidade, com grandeza, com fé,
a ter sempre em mente uma tática de artifício e
defesa contra um inimigo adorado?
Aí
viu Luísa pintar-se-lhe na memória o olhar duro
com que o amante crivara há pouco a doçura tão
sincera da sua humildade afetuosa, e com um suspiro melancólico
aceitou a penosa imposição desse duelo talvez necessário
à conservação do seu amor.
[Publicado
em Gradações, contos, 1897]
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