Verbete organizado
por:

Eliane Vasconcellos

 



Carmem Dolores


Textos:

Duelo

— Mas enfim, o que tens? Que te fiz eu? Por que me tratas deste modo?

E Luísa prostava-se aos pés de seu amante, humilde e implorativa, esmagando a curva do seu busto delicado nesse corpo que a evitava, rígido, numa atitude hostil e irreconciliável.

— Armando!... Armando!... — insistia ela, a princípio doce e chorosa, mas depois um pouco impaciente... E começou a sacudi-lo com certa irritação, tentando ler-lhe o pensamento no olhar duro que se desviava, impenetrável.

Então Luísa ergueu-se com uma sacudidela brusca de ombros e arremessou consigo para cima de uma poltrona, onde ficou a dardejar raios de cólera concentrada sobre o ente enigmático que a desafiava, sempre mudo e enterrado no seu divã, batendo impertinentemente com a ponta da bengala no tapete.

E um silêncio de ódio passou entre os dois amantes nesse delicioso boudoir, destinado aos ternos conchegos da intimidade feliz, em que tudo falava baixinho de beijos e carícias na desordem artística dos trastes e na moleza das almofadas atiradas aqui e acolá, ao alcance do joelho, que se quisesse dobrar numa postura de adoração.

Eis, porém, que Luísa se levanta com impetuosidade, e a cauda serpentina do seu longo roupão de seda acompanha-lhe os passos febris pelo aposento, saltando, parando, enroscando-se pelos móveis, como alguma coisa de vivo e palpitante, que partilhasse os estremecimentos e as indecisões da forma feminina de que faz parte. Armando agora segue, com um meio sorriso que lhe encrespa o lábio, toda essa tortura de que se sente causa.

— Luísa!... — grita ele enfim... Ela pára, mas de longe, com as mãos cruzadas atrás das costas, numa posição zombeteira e provocante; e por entre os cílios descidos, num ar interrogativo, deixa cair sobre o amante todo o peso do mais irônico e implacável ressentimento. É ele então que se ergue e lentamente se aproxima, curvando-se para examinar de perto o belo rosto que há pouco chorou sobre o seu peito e agora o encara com impassibilidade tão altiva.

Os olhos de ambos encontram-se, medem-se, penetram-se, mergulham na alma um do outro e dessa análise se desviam, tristes e desiludidos. O que leram, santo Deus?... A verdade humana, que é a eterna solidão de cada criatura, e a inanidade de todos os esforços que se empregam durante a vida, em busca da fusão absoluta que jamais, jamais se produz.

Dentro de si, Luísa pensava: "Tudo isto que aqui está, foi para ele... Não há neste ninho de amor um objeto só que não ateste o meu carinhoso empenho de acariciar-lhe a vista por todos os meios. Estas flores eu as colhi para sorrirem ao seu gosto artístico.

Estes quadros, pendurei-os para satisfazer a sua adoração do belo... Tive-o presente ao dispor os bibelôs desta mesa, ao preparar a meia-luz desta lâmpada, ao conchegar estes coxins do sofá onde se deviam trocar os nossos protestos de amor. E foi para gozar o resultado querido de todos estes preparativos tão doces, que me perdi por ele e me fechei no apertado círculo de um único objetivo — a sua paixão, confiante nas juras e promessas que soube murmurar-me a sua bela voz de ouro, quando ainda me apetecia o seu desejo de homem.

Hoje, porém, que me sente toda sua, presa na mão, escrava da sua vontade, ei-lo que busca pretextos para me dar o menos que possa da sua existência, contrariado no seu egoísmo; apenas reclamo o que me foi prometido. Simula então motivos de irritação e entra-me por aqui amuado e taciturno. É um mau pagador! É um ingrato! Mas não posso ainda fugir-lhe porque o amo assim mesmo e não saciei a sede da sua posse... Mais tarde, porém..."

E toda a ilusão do sentimento se quebrava nesta reticência de Luísa, que parecia aceitar a possibilidade de um fim.

Do seu lado, eis o que dizia Armando consigo:

"Preciso decididamente defender-me, senão esta Luísa invade-me a vida, os hábitos e não me consente mais liberdade alguma de movimentos. Tudo isto aqui é na realidade encantador, mas sempre, todos os dias, ah! não. Já ela se julga com o direito de chamar-me, quando eu não venho, e estas coisas não me agradam. Entretanto não posso também afastar-me...

Pobre querida! ela gosta tanto de mim! É uma cegueira. E demais, demais..."

Armando parou aqui o seu raciocínio, porque dessa contemplação muda ia nascendo em ambos um enternecimento suave, uma tristeza, um como desejo de afogarem num simulacro de felicidade e ternura toda essa maldita lucidez, que envenenava as suas melhores ilusões.

Luísa deixou então pender a fronte sobre o ombro do amante, que a estreitou contra si; e, de repente, num amplexo violento, nervoso, quase brutal, buscaram eles esmagar nos lábios um do outro as terríveis verdades que pareciam escapar-se dos próprios beijos.

— Enfim! balbuciava Luísa, voltaste a ser para mim o que eras...

— Oh! meu grande amor! — repetia Armando.

Os olhos inquietos de ambos continuavam, porém, a traspassar-se, desconfiados; e quando o bem-amado saiu e Luísa ficou meditando à sua janela, engrinaldada de jasmins, como que ouviu, na escuridão da noite, levantar-se uma voz do silêncio das coisas — voz cruel, voz desanimadora, que lhe segredava a confirmação de todas as suas pungentes dúvidas. Dizia-lhe esse eco do íntimo pensamento, que o amor é na sua realidade um duelo entre o homem e a mulher, os quais ocultam sob a recíproca adoração as armas do orgulho, do egoísmo, do insaciável domínio. Cada amante quer vencer o outro, na inútil aspiração de possuir um ente que seja todo e exclusivamente seu; mas, como esse outro contém em si iguais ambições, cruzam-se eternamente os floretes, num torneio que só termina quando um dos combatentes aceita a morna passividade de vencido. Neste caso, entretanto, o vencedor se aborrece de firmar o cunho da sua força numa alma inerte e a paixão se extingue por falta de luta e de alimento.

Cumpre então aprovar esse duelo que forma o fundo de todo o amor, sobretudo quando ele une dois seres modernos, complicados e possuídos do espírito analítico deste fim de século, que estraga as melhores impressões do sentimento? O que fazer, porém, da sinceridade que afinal também muitas vezes existe na alma humana e principalmente feminina! Como conciliar a necessidade da luta com o desejo de abandono, de avassalamento e confiança, a que fora tão grato entregar-se a criatura na paixão? Pois não é cem vezes preferível amar com simplicidade, com grandeza, com fé, a ter sempre em mente uma tática de artifício e defesa contra um inimigo adorado?

Aí viu Luísa pintar-se-lhe na memória o olhar duro com que o amante crivara há pouco a doçura tão sincera da sua humildade afetuosa, e com um suspiro melancólico aceitou a penosa imposição desse duelo talvez necessário à conservação do seu amor.

[Publicado em Gradações, contos, 1897]