Motivo
Eu
canto porque o instante existe
E
a minha vida está completa
Não
sou alegre nem sou
triste
Sou
poeta.
Irmão
das coisas fugidias,
Não
sinto gozo nem tormento,
Atravesso
noites e dias
No
vento.
Se
desmorono ou se edifico,
Se
permaneço ou me desfaço,
_
não sei, não sei . Não sei se fico
ou
passo.
Sei
que canto. E a canção é tudo.
Tem
sangue eterno a asa ritmada.
Se
permaneço ou me desfaço,
_não
sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei
que canto. E a canção é tudo.
Tem
sangue eterno a asa ritmada.
E
um dia sei que estarei mudo:
_
mais nada.
(Viagem)
Retrato
Eu
na tinha este rosto de hoje,
Assim
calmo, assim triste, assim magro,
Nem
estes olhos tão vazios,
Nem
o lábio amargo.
Eu
não tinha estas mãos sem força,
Tão
paradas e frias e mortas;
Eu
não tinha este coração
Que
nem se mostra.
Eu
não dei por esta mudança,
Tão
simples, tão certa , tão fácil:
_
Em que espelho ficou perdida
a
minha face?
(Viagem)
Elegia
Minha
primeira lágrima caiu dentro de teus olhos.
Tive
medo de a enxugar: para não saberes que havia caído.
No
dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,
Modelada
pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.
Exalava-se
de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua.
Vi
aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,
E
a voz dos pássaros e a das águas correr,
_
sem que a recolhessem teus ouvidos inertes.
Onde
ficou teu outro corpo?
Na parede? Nos móveis? No teto ?
Inclinei-me
sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho,
E
tristemente te procurava.
Mas
também isso foi inútil, como tudo mais.
(...)
(Mar absoluto & Outros poemas)
Balada
das dez bailarinas no cassino
Dez
bailarinas deslizam
Por
um chão de espelho.
Têm
corpos egípcios com placas douradas,
Pálpebras
azuis e dedos vermelhos.
Levantam
véus brancos, de ingênuos aromas,
E
dobram amarelos joelhos.
(...)
Os
homens gordos olham com um tédio enorme
As
dez bailarinas tão frias.
Pobres
serpentes sem luxúria,
que
são crianças durante o dia.
Dez
anjos anônimos, de axilas profundas,
Embalsamados
de melancolia.
Vão
perpassando como dez múmias
As
bailarinas fatigadas.
Ramo
de nardos inclinando flores
Azuis,
brancas, verdes, douradas.
Dez
mães chorariam, se vissem
As
bailarinas de mãos dadas.
(Retrato natural)
Cenário
Eis
a estrada, eis a ponte, eis a montanha
Sobre
a qual se recorta a igreja branca.
Eis
o cavalo pela verde encosta
Eis
a soleira, o pátio, a mesma porta.
E
a direção do olhar. E o espaço antigo
Para
a forma do gesto e do vestido.
E
o lugar da esperança. E a fonte . E a sombra.
E
a voz que já não fala, e se prolonga.
E
eis a névoa que chega, envolve as ruas,
Move
a ilusão de tempos e figuras.
_
A névoa que se adensa e vai formando
nublados
reinos de saudade e pranto.
(Romanceiro da Inconfidência)
Romance
LIII ou Das palavras aéreas
Ai,
palavras, ai, palavras,
Que
estranha potência a vossa!
Ai,
palavras, ai, palavras,
Sois
de vento, ides no vento,
No
vento que não retorna,
E,
em tão rápida existência,
Tudo
se forma e transforma!
Sois
de vento, ides no vento,
E
quedais, com sorte nova!
Ai,
palavras, ai, palavras,
Que
estranha potência a vossa!
Todo
o sentido da vida
Principia
à vossa porta;
O
mel do amor cristaliza
Seu
perfume em vossa rosa;
Sois
o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota...
A
liberdade das almas.
Ai!
Com letras se elabora...
E
dos venenos humanos
Sois
a mais fina retorta:
Frágil,
frágil como o vidro
E
mais que o aço poderosa!
Reis,
impérios, povos, tempos,
Pelo
vosso impulso rodam...
(...)
Detrás
de grossas paredes,
De
leve, quem vos desfolha?
Pareceis
de tênue seda
Sem
peso de ação nem de hora...
_
e estás no bico das penas,
_
e estais na tinta que se molha,
_
e estais nas mãos dos juízes,
_
e sois o ferro que arrocha,
_
e sois barco para o exílio,
_
e sois Moçambique e Angola!
(...)
Ai,
palavras, ai, palavras,
Mirai-vos:
que sois agora?
(...)
Ai,
palavras, ai, palavras,
Que
estranha potência, a vossa!
Éreis
um sopro de aragem...
_
sois um homem que se enforca!
(Romanceiro da Inconfidência)
Obras
sobre a autora:
Andrade,
Mário. O empalhador de passarinhos. São Paulo : Martins;Brasília:
MEC/INL, 1972.
Bosi,
Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São
Paulo : Cultrix,
Gouvêa,
Leila V.B. Cecília em Portugal. São Paulo :
Iluminuras,2001.
Lamego,
Valéria. A farpa e a Lira – Cecília
Meireles na Revolução de 30. Rio de Janeiro/RJ
:Record,1996.
Meireles,
Cecília.Obra poética. Rio de Janeiro: Editora José
Aguilar, 1958. Introdução de Darcy Damasceno.
Neto,
Miguel Sanches. Cecília Meireles
e o tempo inteiriço. In: Cecília
Meireles.Obra Completa, Rio de Janeiro,2001.
Zagury,
Eliane. Cecília Meireles:notícia
biográfica, estudo crítico, antologia, biografia, discografia,
partituras. Petrópolis/RJ:Vozes, 1973.
Vianna,
Lúcia Helena. Cecília Meireles (Biografia).Site Vidas Lusófonas,
coordenação de Fernando Correia da Silva, Lisboa, Portugal.( www.vidaslusofonas.pt
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