Verbete organizado por Lúcia Helena Vianna

 

 



Cecília Meireles


Textos:


Motivo

Eu canto porque o instante existe

E a minha vida está completa

Não sou alegre  nem sou triste

Sou poeta.

 

Irmão das coisas fugidias,

Não sinto gozo nem tormento,

Atravesso noites e dias

No vento.

 

Se desmorono ou se edifico,

Se permaneço ou me desfaço,

_ não sei, não sei . Não sei se fico

ou passo.

 

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

Se permaneço ou me desfaço,

_não sei, não sei. Não sei se fico

 ou passo.

 

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

_ mais nada.

                        (Viagem)

 

Retrato

 

Eu na tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.

 

Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.

 

Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa , tão fácil:

_ Em que espelho ficou perdida

a minha face?

                                               (Viagem)

 

Elegia

 

Minha primeira lágrima caiu dentro de teus olhos.

Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído.

 

No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,

Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.

 

Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua.

 

Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas pálpebras,

E a voz dos pássaros e a das águas correr,

_ sem que a recolhessem teus ouvidos inertes.

 

Onde ficou teu outro  corpo? Na parede? Nos móveis? No teto ?

 

Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho,

E tristemente te procurava.

 

Mas também isso foi inútil, como tudo mais.  (...)

 

                                               (Mar absoluto & Outros poemas)

 

 

Balada das dez bailarinas no cassino

 

Dez bailarinas deslizam

Por um chão de espelho.

Têm corpos egípcios com placas douradas,

Pálpebras azuis e dedos vermelhos.

Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,

E dobram amarelos joelhos.

 

(...)

 

Os homens gordos olham com um tédio enorme

As dez bailarinas tão frias.

Pobres serpentes sem luxúria,

que são crianças durante o dia.

Dez anjos anônimos, de axilas profundas,

Embalsamados de melancolia.

 

Vão perpassando como dez múmias

As bailarinas fatigadas.

Ramo de nardos inclinando flores

Azuis, brancas, verdes, douradas.

Dez mães chorariam, se vissem

As bailarinas de mãos dadas.

                                               (Retrato natural)

 

              Cenário

 

Eis a estrada, eis a ponte, eis a montanha

Sobre a qual se recorta a igreja branca.

 

Eis o cavalo pela verde encosta

Eis a soleira, o pátio, a mesma porta.

 

E a direção do olhar. E o espaço antigo

Para a forma do gesto e do vestido.

 

E o lugar da esperança. E a fonte . E a sombra.

E a voz que já não fala, e se prolonga.

 

E eis a névoa que chega, envolve as ruas,

Move a ilusão de tempos e figuras.

 

_ A névoa que se adensa e vai formando

nublados reinos de saudade e pranto.

                                              

                                               (Romanceiro da Inconfidência)

 

Romance LIII ou Das palavras aéreas

 

 

Ai, palavras, ai, palavras,

Que estranha potência a vossa!

Ai, palavras, ai, palavras,

Sois de vento, ides no vento,

No vento que não retorna,

E, em tão rápida existência,

Tudo se forma e transforma!

 

Sois de vento, ides no vento,

E quedais, com sorte nova!

 

Ai, palavras, ai, palavras,

Que estranha potência a vossa!

Todo o sentido da vida

Principia à vossa porta;

O mel do amor cristaliza

Seu perfume em vossa rosa;

Sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota...

 

A liberdade das almas.

Ai! Com letras se elabora...

 

E dos venenos humanos

Sois a mais fina  retorta:

Frágil, frágil como o vidro

E mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

Pelo vosso impulso rodam...

 

(...)

 

Detrás de grossas paredes,

De leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda

Sem peso de ação nem de hora...

_ e estás no bico das penas,

_ e estais na tinta que se molha,

_ e estais nas mãos dos juízes,

_ e sois o ferro que arrocha,

_ e sois barco para o exílio,

_ e sois Moçambique e Angola!

 

(...)

 

Ai, palavras, ai, palavras,

Mirai-vos: que sois agora?

 

(...)

 

Ai, palavras, ai, palavras,

Que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro de aragem...

_ sois um homem que se enforca!

 

                                                           (Romanceiro da Inconfidência)

 

 

 

Obras sobre a autora:

 

 

Andrade, Mário. O empalhador de passarinhos. São Paulo : Martins;Brasília: MEC/INL, 1972.

Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo : Cultrix,

Gouvêa, Leila V.B. Cecília em Portugal. São Paulo : Iluminuras,2001.

Lamego, Valéria. A farpa e a Lira – Cecília  Meireles na Revolução de 30. Rio de Janeiro/RJ :Record,1996.

Meireles, Cecília.Obra poética. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958. Introdução de Darcy Damasceno.

Neto, Miguel Sanches. Cecília  Meireles e o tempo inteiriço. In: Cecília  Meireles.Obra Completa, Rio de Janeiro,2001.

Zagury, Eliane. Cecília  Meireles:notícia biográfica, estudo crítico, antologia, biografia, discografia, partituras. Petrópolis/RJ:Vozes, 1973.

Vianna, Lúcia Helena. Cecília Meireles (Biografia).Site Vidas Lusófonas, coordenação de Fernando Correia da Silva, Lisboa, Portugal.( www.vidaslusofonas.pt )