Verbete organizado
por:

Eliane Vasconcellos

 



Corina Coaraci

 

Textos:

A mão do diabo[1]

 

            Em uma pobre vila de Pernambuco, há muitos e muitos anos vivia um casal de modestos lavradores que tinham [sic] por único bem uma formosíssima filha.

            Pobres e laboriosos, cultivando apenas o necessário para viverem, no entanto os dous velhos sonhavam um brilhantíssimo futuro para a menina que na pia recebera o doce nome de Maria.

            Como já dissemos esta última era de peregrina beleza; alta, esbelta, morena, desse moreno por assim dizer, límpido, das mulheres do norte, tinha no entanto uma particularidade singular no seu tipo; eram os seus olhos verdes, mas de um verde estranho que parecia ter reflexos metálicos.

            Natureza especial, criada de um modo diverso do das outras moças de sua classe, Maria vivia sempre só, retraída, passeando longos anos em uma mata próxima, onde se entregava a sonhos de glória e de felicidades impossíveis de realizar.

            Não longe da vila erguia-se uma habitação nobre onde residia um rico e poderoso senhor de engenho que era o terror das vizinhanças, já pela preponderância que exercia sobre todos que o cercavam, já pela crueldade com que tratava os seus numerosos escravos.

            Passando um dia pela vila viu este senhor a Maria; ficou desde logo deslumbrado pela beleza da moça. Resolveu fazer dela sua mulher, pois que até então não se casara por não ter encontrado moça alguma bastante formosa para o seu gosto.

            Desde então começou o fazendeiro a freqüentar a vila e a casa dos pais de Maria. Não tardaram estes a se aperceberem da paixão que sua filha inspirara ao ricaço.

Começaram logo estes a catequizar a filha para que aceitasse a corte do barão (pois era titular o senhor do engenho).

— Maria, dizia-lhe a mãe, olha que o barão é muito rico; se te casares terás carruagens e jóias, escravos e fâmulos para te servirem. Serás a senhora mais poderosa destas redondezas; ao passo que, se recusares o casamento que te aparece, viverás sempre na pobreza.

— Que importa! replicava a moça, não me quero casar com semelhante homem! É mau, é cruel! contam-se coisas horríveis do seu gênio.

— Mas tu, com jeito, poderás domá-lo.

Durante muito tempo resistiu a moça aos conselhos dos pais.

            Maria tinha um coração bom e caridoso; repugnava-lhe a idéia de unir-se a um homem que praticava toda a sorte de más ações.

            Egoísta e cruel, o barão não hesitava em esmagar um ente mais fraco do que ele, para satisfazer o mais insignificante dos seus caprichos.

            Sabedora destas cousas todas, a moça procurava esquivar-se aos rogos dos pais.

Afinal o barão pediu oficialmente aos pais a mão de Maria.

Esta, desesperada com a obsessão dos velhos, exclamou arretadamente:

    Prefiro dar minha mão ao diabo!

E correu para a mata, seu refúgio habitual.

Não estava muitos minutos quando encontrou-se com um esbelto rapaz que dirigiu-se para ela dizendo:

— Ainda há pouco, menina, disse preferir dar a sua mão ao diabo do que concedê-la ao barão. Pois bem, eis-me aqui; sou o diabo. Se ainda persiste na sua idéia, eis-me pronto a aceitar o pacto.

Maria, que ainda se achava presa da cólera e do desespero, exclamou:

— Oh! farei tudo quanto quiser, menos casar-me com o barão. Já disse, prefiro dar a mão ao diabo a conceder-lha. Meus pais perseguem-me porque ele é rico e poderoso.

— Está bem! replicou o Diabo; então a senhora dá-me a sua mão em troca das riquezas que seus pais almejam?

— Sim. Ei-la.

E estendeu a mão esquerda ao diabo.

Este tomou-a nas suas e passou-lhe no dedo anular um círculo de ouro que mais parecia de brasa. A pobre moça estremeceu ao contato das mãos do diabo como se tivesse pegado em brasas.

— Agora, menina, disse-lhe o Diabo, a sua mão pertence-me. Tudo quanto com ela fizer será obra minha. Volte sossegada para a sua casa. Amanhã à meia-noite dirija-se ao batatal, e no lugar onde encontrar um enxame de vaga-lumes cave a terra. Aí encontrará um tesouro.

O diabo tomou-lhe a mão, beijou-a e desapareceu.

                        Maria voltou para a casa em um estado de exaltação fácil de imaginar-se. Parecia-lhe tudo aquilo um sonho horrível.

            Chegando à porta de sua residência, tentou tirar do dedo o anel do diabo que parecia queimar-lhe as carnes.

O anel, conquanto ela o sentisse, desaparecera. Dir-se-ia que se lhe entranhara nas carnes. Apenas um ligeiro círculo vermelho indicava o lugar em que o diabo o colocara.

Entrou na sala onde se achavam seus pais e principiou a ocupar-se em alguns serviços leves da casa.

— Então, filha, perguntou-lhe o pai, ainda estás resolvida a recusar o barão.

— Mais do que nunca, meu pai.

— Ah! Maria, exclamou a velha, estás cavando a nossa desgraça! Sabes como é mau o barão; se recusas casar-te com ele, não tardará ele a nos perseguir com toda sorte de injúrias. Ele pode nos reduzir à miséria, pois bem sabes que teu pai deve-lhe dinheiro.

            — Pois minha mãe sabendo-o tão mau ainda quer que me case com ele! Deixe estar, a sorte não nos há de abandonar.

— Deus, é que devias dizer minha filha! disse a velha.

— Ora minha mãe, Deus não se ocupa com as nossas misérias!

Os pobres pais sacudiram tristemente a cabeça.

Maria continuou a tratar dos seus afazeres. Começou a pôr a mesa. No momento, porém, em que pegou com a mão esquerda em um prato, caiu-lhe este das mãos e partiu-se.

A moça estremeceu.

Contudo, não se deu por achada.

Sentaram-se os três à mesa; na ocasião porém de Maria pegar no talher, o cabo do garfo partiu-se-lhe na mão.

    Oh! menina, que tens tu hoje? perguntou-lhe a mãe. A modo que te acho mudada?

Estás doente?

— Não senhora.

Chegada a noite trataram os velhos de se acomodar cedo. Maria recolheu-se também ao seu quartinho e aí entregou-se a um longo cismar.

Dir-se-ia que depois do seu pacto com o espírito maligno, Maria perdera de todo aquela bondade de alma que a caracterizava. À sua mente só vinham sonhos de grandezas e de luxo; via-se já cercada de inúmeras riquezas, de mil alegrias e satisfações.

Aproximava-se, porém, a meia-noite, hora marcada pelo demônio para a descoberta do tesouro.

Maria, que não queria que os pais suspeitassem do seu pacto, tratou de arranjar um pretexto plausível para ir ao batatal.

Aproximou-se da janela de seu quarto, que dava para o lugar marcado.

Legiões de vaga-lumes pareciam dirigir-se para ele. Dir-se-ia um exército bem disciplinado obedecendo às ordens de emérito general. Faziam mil evoluções, vinham e iam, congregando-se todos, porém, em um ponto só, onde esvoaçavam em círculo.

Depois de contemplá-los alguns momentos, Maria achou o pretexto desejado.

Correu para o quarto do pai exclamando:

— Meu pai! meu pai! venha ver uma coisa do meu quarto.

Os velhos acordaram sobressaltados e levantaram-se sem demora.

    O que há filha!

    Venha meu pai! venha ao meu quarto!

Sem hesitar os velhos acompanharam a filha. Maria conduziu-o para a janela e mostrou-lhe os vaga-lumes que luziam com aquele brilho que lhes é peculiar nos países tropicais.

    Meu pai já viu tantos vaga-lumes assim juntos? perguntou Maria.

    Nunca! isso parece feitiçaria.

— Qual feitiçaria! disse a moça. Talvez haja algum animal morto lá no batatal! Quem sabe se não é o corpo de algum gato. Se eu fosse meu pai, ia ver.

— Estás douda, menina! disse a mãe. Aquilo são obras do demônio!

E persignou-se.

Maria riu-se, e depois de muito falar, de muito persuadi-lo conseguiu que o velho saísse com ela ao batatal.

Foram juntos; chegados porém ao lugar onde pareciam ter visto os vaga-lumes estes haviam desaparecido.

    Eu não digo! isto é feitiçaria, murmurou o velho.

— Ora meu pai, deixe-se disso. Olhe, vou marcar o lugar e amanhã cavaremos a terra.

    Isso nunca!

— Pois meu pai, se é feitiçaria razão de mais para tratarmos de desfazê-la. Quem sabe se aí não haverá um tesouro escondido.

E riu-se.

O velho, imitando a mulher, contentou-se em fazer o sinal da cruz.

Chegados à casa, a velha que os esperava à porta, exclamou:

— Credo! menina! estás com os olhos luzindo que parecem dous vaga-lumes.

Com efeito, os olhos verdes da moça, que sempre tinham um reflexo metálico luziam extraordinariamente.

— É que são olhos de gato minha mãe.

Entraram todos, e na sala então o velho narrou à mulher a sua expedição.

— Quem sabe, murmurou ela, talvez a Maria tenha razão! Ouvi sempre minha mãe contar a história de um homem criminoso e assassino que enterrou o dinheiro roubado, e que, foi afinal descoberto, porque a alma do defunto vinha todas as noites, à meia-noite colocar uma vela acesa no lugar do crime! Se eu fosse você, amanhã iria ver.

O velho, açulado pelas duas mulheres, prometeu cavar no dia seguinte o lugar marcado por Maria.

Com efeito, na manhã seguinte o pai, acompanhado pela filha foi cavar a terra.

À certa profundidade bateu a sua enxó em um corpo duro, que em breve mostrou ser um grande caixão.

A muito custo foi ele içado da cova pelo velho e mais alguns homens que Maria correra a chamar na vila.

Aberto o caixão, descobriu-se nele uma grande quantidade de moedas de ouro antiqüíssimas, e inúmeras pedras preciosas.

Não tardou que a notícia se espalhasse pela povoação e pelas vizinhanças.

Não cessavam as visitas aos velhos, e todos perguntavam a maneira por que fora descoberto o tesouro.

Os pais de Maria, que nada tinham a ocultar narravam fielmente o que ocorrera.

— Qual, seu Bernardo, diziam quase todos, isso é obra do tinhoso!

Enfim, tanto disseram, tanto martelaram os moradores da vila que os velhos acreditaram na misteriosa intercessão do diabo na descoberta das suas riquezas.

Trataram de convencer a Maria do mesmo, rogando-lhe ao mesmo tempo que se desfizesse daquele ouro.

— Estão doudos! respondia ela. Não estão ainda fartos de passarem uma vida de privações e misérias? Quando recusei dar a minha mão ao senhor do engenho, os senhores não cessavam de chorar a sua pobreza. Agora que possuem a riqueza não a querem! Façam o que entenderem. Quanto a mim não desisti deste dinheiro, quero me divertir!

Calaram-se os velhos, e daí em diante não tocaram mais no assunto com Maria. Não se utilizaram, porém, da sua nova riqueza, continuaram a viver do mesmo modo, trabalhando como outrora.

Maria submeteu-se, pois via que seus pais definhavam a olhos vistos.

Passados três meses morreu o velho, e poucas semanas após ele, seguiu-se a velha.

Livre da vigilância dos pais, Maria entregou-se à sua sede de luxo e de fausto.

Teve trens riquíssimos, numerosos escravos, vestidos sem conta e jóias como outras não havia.

Mandou construir um palácio riquíssimo onde deu bailes e festas a que concorriam quase todos os senhores de engenho das vizinhanças.

Os habitantes da vila, porém, quase todos pobres e tementes a Deus, como haviam sido os pais de Maria, evitavam-na.

Diziam, que, quando chegava a noite, a moça, cujos olhos luziam na escuridão como os olhos de gato, fugia para o mato onde se demorava longas horas.

Diziam que em sua casa não havia nem oratórios nem santos, que a moça evitava a igreja e o diabo a cruz, e não tardaram muito em chamá-la a “ possessa”.

Passaram-se dez ou doze anos. Maria conservava-se[2] solteira, tendo sempre recusado todos os pedidos que lhe haviam feito para casar-se, pois que a uma moça tão rica não faltaram noivos.

Era chegado o mês de maio. Em uma noite de luar, Maria saiu a passeio, como costumava fazer freqüentemente.

Passando por uma casa de pobríssima aparência, a moça ouviu pelas janelas entreabertas a voz de uma criança entremeada com uma de mulher.

Irresistível curiosidade levou-a a espreitar pelo postigo.

Em uma sala pobremente mobiliada, ajoelhados ante uma imagem da Virgem alumiada por uma triste velazinha de cera, estavam mãe e filho.

A mãe, jovem ainda segurava nas suas as mãos postas do louro filhinho e ensinava-lhe a balbuciar uma oração:

“Ave Maria...”

Maria, estremeceu. Em um minuto perpassou-lhe na mente toda a sua existência passada. Viu-se criança ajoelhada junto a sua mãe, aprendendo a orar também; mais tarde, moça, cercada pelos desvelos de seus pais até o momento fatal em que uma fatal alucinação a entregara ao demo.

Dentro da sala as vozes continuavam a murmurar.

“Bendita dita [sic] sois entre as mulheres...

E ela Maria! Era amaldiçoada! Para ela não existiam, nem nunca poderiam existir as alegrias santas da maternidade! Para ela os júbilos de esposa eram vedados.

 “Rogai por nós, pecadores... continuavam as vozes

A mísera lá fora prorrompeu em pranto e caiu de joelhos na terra úmida exclamando.

— Ah! sim! mãe santíssima, rogai por mim pecadora arrependida!

Quanto tempo permaneceu ali imóvel, debulhada em pranto, a arrependida é impossível precisar.

A mãe e o filho já se haviam recolhido; a lua ocultara-se atrás dos montes de há longo tempo quando Maria regressou à casa.

 

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No dia seguinte a “Possessa” chamava o santo velho que era pároco da vila e fazia-lhe doação do seu palácio para hospital de caridade; além de avultada quantia para ser distribuída pelos indigentes.

Aos escravos deu ela liberdade.

E só, trajando vestes de luto, sem levantar a cabeça, sem se despedir, Maria afastou-se da sua terra natal.

Só o velho padre teve para ela uma palavra de afeição.

— É uma infeliz! murmurou ele.

Alguns anos depois chegou à vila a notícia de uma mulher santa, que vivendo na mais abjeta pobreza, praticava toda a sorte de obras de caridade. Por toda parte onde chorava a miséria, onde a doença ou a peste se mostrava, lá ia ela levar a esmola das suas consolações, dos seus carinhos e desvelos. Não dizia a notícia, porém, que essa mulher não se utilizava da mão esquerda que trazia sempre oculta no seio.

 

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Passados uns dez anos chegou à vila uma mendiga doente pedindo asilo no hospital fundado pelo vigário. Concederam-lho e poucos dias depois faleceu ela. Foi enterrada no antigo cemitério, onde só a acompanhou o velho vigário que murmurava:

— Era uma santa.

Não há muito tempo, procedendo a exumação de cadáveres de um antigo cemitério de uma cidade do interior de Pernambuco, afim de trasladar os ossos para novo campo santo, encontrou-se um caixão em que estava o cadáver de uma mulher em perfeito estado de conservação, exceto a mão esquerda que se achava completamente negra, como que carbonizada.

 

O protótipo de D. Juan

 

 

            Todos conhecem a deliciosa ópera que Mozart escreveu, há um século sobre o libreto do abade Del-Ponte; todos conhecem a história de D. Juan, o libertino por excelência; todos se lembram das astúcias de Leporello, as faceirices de Zerlina, os ciúmes de Masetto, os lamentos de D. Ana, os furores de D. Elvira, os suspiros de D. Otávio e a mão gelada do Comendador. Antes de ter ouvido as sublimes melodias de Mozart sobre esta história, já tínhamos lido nos livros alusões a ela, já tínhamos ouvido a vovó contá-la. É uma espécie de legenda que atravessou séculos e países e cujos personagens tornaram-se proverbiais.

            Mas qual a origem desta legenda, qual a versão mais autêntica, como foi que encontrou tão bom acolhimento no mundo? Eis o que muito poucos sabem, e que no entanto merece ser conhecido. Resumiremos em poucas palavras aquilo que é historicamente conhecido a respeito de D. Juan.

            A sua pátria é a Espanha, e não podia ser de outro modo. Antigas crônicas andaluzas narram a vida do primeiro D. Juan, dando Sevilha — pátria do Barbeiro — como a sua cidade natal, e teatro das suas empresas amorosas. Estas crônicas porém limitam-se a contar o fato da morte do Comendador, e as circunstâncias que o acompanharam. Eis o que elas narram:

            D. Juan Tenorio, de família nobre inscrita no número das Vinte e quatro famílias patrícias de Espanha, matou em Sevilha o velho Comendador Gonçalo de Ulhoa, o qual queria opor-se ao rapto violento de sua filha, tentado pelo D. Juan. O cadáver foi sepultado no convento de S. Francisco, onde a família possuía uma capela, e sobre a sepultura colocaram uma estátua do defunto. Quanto ao jovem fidalgo, o seu nascimento, e as suas relações com famílias poderosas, livraram-no do braço da justiça. Porém os frades franciscanos que conheciam a vida dissoluta de D. Juan e queriam castigá-lo, conseguiram atraí-lo ao convento, onde o mataram, satisfazendo assim a sede de vingança da família de Ulhoa. Espalharam no entanto pela cidade a notícia que, tendo o moço insultado a estátua do Comendador, esta o havia arrebatado, e precipitado por entre as fendas do assoalho que se havia aberto, no fogo do inferno. Com o tempo esta invenção dos frades substituiu a verdade, e a Igreja ganhou com isso mais um exemplo para citar aqueles que desprezam a justiça divina, e ao mesmo tempo, sem o saber, tornou-se benemérita da poesia. Não é a primeira vez que esta deve ter dado à Igreja o mérito de uma bela invenção.

            Quando foi publicado o D. Juan de Byron, alguns críticos ingleses puderam certificar que uma nobre família de fidalgos de nome Tenorio havia com efeito existido na Andaluzia, e que o nosso herói fora o filho mais moço de um célebre almirante Tenorio, amigo íntimo do rei castelhano, Pedro, o cruel, companheiro dos seus deboches, instigador das suas crueldades. A época das extravagâncias de D. Juan deve pois ter sido pela segunda metade do século décimo quarto.

            O fim medonho de D. Juan perpetuou-se na memória do povo, e para pô-la sempre em maior harmonia com a justiça suprema, a pessoa do herói com o andar do tempo foi tomando proporções cada vez maiores; ele tornou-se um sedutor de profissão, desprezando as coisas mais sagradas, a personificação do vício audaz e estouvado. Deste modo, pouco a pouco foram-lhe atribuídos muitos outros fatos e episódios, entre os quais o seguinte:

            Depois de ter passado na orgia um dia inteiro, D. Juan foi à tarde passar nas margens do Guadalquivir, e vendo um outro personagem passeando na margem oposta pediu-lhe cinicamente, fogo para o seu cigarro. Imediatamente o outro estendeu o braço, e estendeu-o tanto que D. Juan pode acender o seu cigarro com o cigarro do desconhecido, o qual era o diabo em pessoa, porém não conseguiu intimidar de modo nenhum ao nosso herói.

            Esta aventura, como se pode conhecer pela alusão ao uso de fumar, só foi atribuída a D. Juan alguns séculos depois, naquela época em que todo aquele que levasse vida desregrada, tinha reputação de ser íntimo do diabo.

            A tradição manteve-se assim por longo tempo entre o povo, e foi só depois de três séculos que um poeta lembrou-se a valer-se dela e tomá-la para argumento de uma obra de imaginação.

            Um frade pregador, Gabriel Tellez, conhecido na literatura espanhola sob o nome de Tirso de Molina, autor de muitas obras dramáticas publicou em 1634 um drama com o título de: El burlador de Sevilla y convidado de piedra cujo herói é D. Juan. Deste tempo em diante os seus gestos e feitos começaram a ser conhecidos fora da Andaluzia, e ele tornou-se uma espécie de tipo cosmopolita, como tornaram-se em grande parte os outros personagens do drama.

            O primeiro pois que tornou D. Juan célebre, e deu o argumento para tantas obras dramáticas, românticas, poéticas e musicais, foi Tirso de Molina; será portanto agradável ver como ele combinou os elementos que lhe foram dados pela tradição, com as criações de sua fantasia.

            Desde a primeira cena encontramos D. Juan ocupando-se exclusivamente de suas conquistas. Apenas chegado em Nápoles, junto ao tio embaixador de Espanha, tendo fugido de Sevilha, para evitar as conseqüências de uma afronta que aí fizera a uma fidalga, acha um meio de penetrar à noite nos aposentos da duquesa Isabel, disfarçado com a roupa de D. Otávio, noivo da jovem fidalga. A duquesa descobrindo o engano a tempo grita por socorro, e aparece o rei, o qual faz prender a D. Juan e o entrega às guardas do embaixador. Este facilita-lhe a fuga, e hei-lo sobre o mar, e depois náufrago numa praia desconhecida. A filha de um pescador, vendo o belo moço desmaiado o recolhe na sua cabana e chama-o à vida. D. Juan abre os olhos, e o seu primeiro pensamento não é o de alegrar-se por ter escapado à morte, mas o de ter a fortuna de achar-se perto de uma moça encantadora. Abre a boca, não para agradecê-la, mas para fazer-lhe um cumprimento, e em pouco tempo esta é vítima das suas seduções. A pobrezinha aprende já muito tarde quanto é mais perigoso pescar homens do que peixes, e depois de ter ajudado o infiel a fugir, descobrindo o seu engano, precipita-se no mar.

            D. Juan no entanto volta para Sevilha, aonde também fora D. Otávio para acusá-lo ante os tribunais da injúria feita a sua noiva. O rei de Sevilha o exila da cidade; mas D. Juan rindo-se dos lamentos de seu pai que lhe mostra a indignidade das suas ações, só se lembra de juntar mais uma aventura às outras. Desta vez trata-se da amante de um amigo, ¾ mas nestas coisas ele não conhecia amigos. Cobrindo-se com a capa vermelha do jovem, ele tenta enganar a bela, mas de novo é descoberto. A moça é D. Ana, filha do Comendador Gonçalo de Ulhoa. Aos gritos da filha aparece o comendador que acomete a D. Juan, e é por ele morto. D. Juan foge, e o amigo, amante de D. Ana, que entra naquele momento é preso como o assassino.

            No entanto o nosso herói vai a um casamento de camponeses, onde a noiva tem a desgraça de agradá-lo e ele com muita astúcia consegue afastar o noivo ciumento. Dá-lhe a entender que a moça já havia faltado à fé jurada, e que pois uma tal esposa não era digna dele; o estúpido camponês acredita e abandona a mulher. D. Juan torna-se o senhor do campo e com quatro palavrinhas doces e alguns juramentos calorosos, conquista o coração da bela camponesa.

            Aqui terminam por ora as aventuras amorosas do nosso herói. As donzelas abandonadas por ele preparam a sua vingança conjuntamente com as senhoras traídas. A arrogância de D. Juan chega ao seu auge e ele acaba por desafiar as potências celestes. Acompanhado por seu criado Catalinon, que pela superstição e a timidez faz um curioso contraste com o seu amo, e que murmura sempre das suas ações sem nunca se resolver a abandoná-lo, vê por acaso a estátua do Comendador, e com ar de mofa convida-a para uma ceia. A estátua aceita e cumpre a sua palavra. O atrevido D. Juan promete por sua vez à estátua, que irá no dia seguinte a uma outra ceia que esta lhe oferece na capela onde se acha o túmulo do Comendador.

            No entanto o rei impõe a D. Juan que se case com a duquesa Isabel, e ele consente, mas quer primeiro cumprir a promessa feita à estátua. Começa o banquete na capela. Coros invisíveis entoam o Dies irae; os manjares compõem-se de escorpiões e serpentes, em vez de vinho servem tinta; o humor tétrico dos convidados torna ainda mais triste esta horrível ceia. Acabado o banquete, o hóspede marmóreo levanta-se e, estendendo a mão destra a D. Juan, exclama:

            ¾ Agora dá-me a tua mão.

            ¾ Oh! estou ardendo, grita D. Juan, o fogo me devora.

            ¾ Não é senão o princípio dos teus tormentos futuros, responde a estátua.

            D. Juan tenta feri-la com um punhal, mas a estátua não passa de um fantasma. Desesperado ele pede um confessor.

            ¾ É muito tarde! responde-lhe o Comendador, e ambos são envolvido pelas chamas. A capela arde, e Catalinon encolhe-se num canto e termina a cena.

            Depois desta horrível catástrofe, o drama continua com as aparências de uma comédia. Todos os casamentos impedidos por D. Juan concluem-se felizmente, e deste modo termina a ação.

            Temos já, pois, todos os personagens da ópera de Mozart, exceto D. Elvira; o protagonista e o seu criado, que chama-se aqui Leporelo; D. Ana, D. Otávio, Zerlina e Masetto. É necessário porém notar que na catástrofe do libretto, D. Juan conserva-se sempre insolente até o fim: sem confissão, sem arrependimento, ele luta até a última hora com o céu, e é precipitado no inferno vencido mas indomado.

            No mais os caracteres conservaram-se pouco mais ou menos, como os escreveu Tirso de Molina; notamos principalmente o contraste entre o audaz D. Juan, que segue sem escrúpulos o impulso do seu instinto sensual, e o sentimental e sempre hesitante D. Otávio. Somente o personagem de D. Ana assumiu na ópera de Mozart proporções muito maiores e o de D. Elvira, não é original, mas introduzido por Molière.

            Molière também escreveu um drama sobre o mesmo assunto, intitulado D. Juan, ou o banquete de D. Pedro.

            Nesta composição, D. Juan apareceu casado; ele raptou D. Elvira do convento e a desposou. A vida conjugal, porém não o agrada, dela se aborrece e abandona a D. Elvira para correr em busca de novos amores. Elvira o segue e procura no correr de todo o drama, chama-o à virtude e a si. O seu coração, como no melodrama de Mozart, está sempre dividido entre o ódio e o amor. O D. Juan de Molière, não tem o mesmo caráter que o de Tirso de Molina. Molière imaginou um filósofo epicureu e ateu, que faz discursos; o herói de Molina era no entanto um bom católico que não negava a sua fé e que sabia que a justiça divina havia de puni-lo algum dia, mas também acreditava que essa catástrofe viria mais tarde, e portanto gozava da vida enquanto era tempo.

            Uma terceira recomposição da comédia de Molière foi feita por Goldoni, mas esta não diverge do original senão no castigo do culpado que em vez de ser precipitado no inferno é morto pelo raio.

            O argumento prestava-se admiravelmente ao teatro e aos gostos daquela época; vemos que mais tarde ofereceu matéria para um bailado cuja música foi escrita por Gluck, e depois um libreto para a ópera escrita por um certo Righini.

            Mas quem deu-lhe a celebridade de que hoje ainda goza, foi o Abade Del-Ponte, que em 1787 escreveu um outro libreto de ópera cuja música foi composta por Mozart, e representada no mesmo ano em língua italiana no teatro de Praga.

            Isto porém não fez cessar o aparecimento dos numerosos D. Juans; ao contrário o sucesso da ópera de Mozart fez aparecer uma série inúmera de imitadores em todos os países e em todas as literaturas, e que criaram um número quase infinito de D. Juans bem pouco parecidos com o seu protótipo.

            Na Espanha, além de D. Juan Tenorio, era conhecido um outro D. Juan de Marena. Ambos rivalizavam pela sua vida extravagante e dissoluta; mas os seus fins eram bem diversos. D. Juan de Marena, na ocasião de raptar uma freira tem uma visão que lhe representa a cena da sua própria morte; isto o impressiona tanto que ele arrepende-se e faz-se frade. O seu remorso então torna-se tão violento quanto era a desordem da sua vida passada; ele martiriza-se continuamente, e na hora da morte pede que o enterrem debaixo do assoalho da igreja a fim que todos o tenham debaixo dos pés. Comparando-o com o selvagem D. Juan da tradição, pode-se chamar a este um D. Juan amansado. Merimée, o espirituoso escritor francês, deixou uma novela sobre este assunto intitulada: As almas do purgatório ou os dois D. Juans.

            Apesar das numerosas obras escritas sobre o mesmo assunto, por tantos poetas que têm procurado mudar a fisionomia característica de D. Juan para lhe dar uma aparência mais humana, o povo conservou-se sempre fiel ao original e não se recorda nem aprecia outro. As imitações, as cópias desapareceram e o original conservou-se em todo o seu primitivo e singular brilho. É verdade que para conservá-lo sempre na memória de todos a música sempre maviosa, sempre fresca de Mozart vale mais do que a extravagante legenda espanhola, mais do que a comédia de Molina, mais do que os versos de Del-Ponte.

            O nome de D. Juan acha-se ligado indissoluvelmente ao de Mozart, como o Barbiere ao de Rossini, como a Norma ao de Bellini.

            É a arte que vive eterna, e vivifica tudo quanto a cerca.

                                                                                                                                   

            Ilustração do Brasil. Rio de Janeiro, jun. 1878.


 



[1] Original manuscrito encontrado no AMLB. Não foi possível saber se foi publicado.

[2] No original, conversava-se.