Corina Coaraci
Textos:
A mão
do diabo
Em uma pobre vila de Pernambuco, há muitos e muitos anos
vivia um casal de modestos lavradores que tinham [sic] por único
bem uma formosíssima filha.
Pobres e laboriosos, cultivando apenas o necessário para
viverem, no entanto os dous velhos sonhavam um brilhantíssimo
futuro para a menina que na pia recebera o doce nome de Maria.
Como já dissemos esta última era de peregrina beleza;
alta, esbelta, morena, desse moreno por assim dizer, límpido, das
mulheres do norte, tinha no entanto uma particularidade singular
no seu tipo; eram os seus olhos verdes, mas de um verde estranho
que parecia ter reflexos metálicos.
Natureza especial, criada de um modo diverso do das outras
moças de sua classe, Maria vivia sempre só, retraída, passeando
longos anos em uma mata próxima, onde se entregava a sonhos de glória
e de felicidades impossíveis de realizar.
Não longe da vila erguia-se uma habitação nobre onde
residia um rico e poderoso senhor de engenho que era o terror das
vizinhanças, já pela preponderância que exercia sobre todos que
o cercavam, já pela crueldade com que tratava os seus numerosos
escravos.
Passando um dia pela vila viu este senhor a Maria; ficou
desde logo deslumbrado pela beleza da moça. Resolveu fazer dela
sua mulher, pois que até então não se casara por não ter
encontrado moça alguma bastante formosa para o seu gosto.
Desde então começou o fazendeiro a freqüentar a vila e a
casa dos pais de Maria. Não tardaram estes a se aperceberem da
paixão que sua filha inspirara ao ricaço.
Começaram
logo estes a catequizar a filha para que aceitasse a corte do barão
(pois era titular o senhor do engenho).
—
Maria, dizia-lhe a mãe, olha que o barão é muito rico; se te
casares terás carruagens e jóias, escravos e fâmulos para te
servirem. Serás a senhora mais poderosa destas redondezas; ao
passo que, se recusares o casamento que te aparece, viverás
sempre na pobreza.
—
Que importa! replicava a moça, não me quero casar com semelhante
homem! É mau, é cruel! contam-se coisas horríveis do seu gênio.
—
Mas tu, com jeito, poderás domá-lo.
Durante muito tempo resistiu a moça aos conselhos
dos pais.
Maria tinha um coração bom e caridoso; repugnava-lhe a idéia
de unir-se a um homem que praticava toda a sorte de más ações.
Egoísta e cruel, o barão não hesitava em esmagar um ente
mais fraco do que ele, para satisfazer o mais insignificante dos
seus caprichos.
Sabedora destas cousas todas, a moça procurava esquivar-se
aos rogos dos pais.
Afinal
o barão pediu oficialmente aos pais a mão de Maria.
Esta,
desesperada com a obsessão dos velhos, exclamou arretadamente:
—
Prefiro dar minha mão ao diabo!
E correu para a mata, seu refúgio habitual.
Não
estava muitos minutos quando encontrou-se com um esbelto rapaz que
dirigiu-se para ela dizendo:
—
Ainda há pouco, menina, disse preferir dar a sua mão ao diabo do
que concedê-la ao barão. Pois bem, eis-me aqui; sou o diabo. Se
ainda persiste na sua idéia, eis-me pronto a aceitar o pacto.
Maria,
que ainda se achava presa da cólera e do desespero, exclamou:
—
Oh! farei tudo quanto quiser, menos casar-me com o barão. Já
disse, prefiro dar a mão ao diabo a conceder-lha. Meus pais
perseguem-me porque ele é rico e poderoso.
—
Está bem! replicou o Diabo; então a senhora dá-me a sua mão em
troca das riquezas que seus pais almejam?
— Sim. Ei-la.
E estendeu a mão esquerda ao diabo.
Este
tomou-a nas suas e passou-lhe no dedo anular um círculo de ouro
que mais parecia de brasa. A pobre moça estremeceu ao contato das
mãos do diabo como se tivesse pegado em brasas.
—
Agora, menina, disse-lhe o Diabo, a sua mão pertence-me. Tudo
quanto com ela fizer será obra minha. Volte sossegada para a sua
casa. Amanhã à meia-noite dirija-se ao batatal, e no lugar onde
encontrar um enxame de vaga-lumes cave a terra. Aí encontrará um
tesouro.
O diabo tomou-lhe a mão, beijou-a e
desapareceu.
Maria voltou para a casa em um estado de exaltação fácil
de imaginar-se. Parecia-lhe tudo aquilo um sonho horrível.
Chegando à porta de sua residência, tentou tirar do dedo
o anel do diabo que parecia queimar-lhe as carnes.
O
anel, conquanto ela o sentisse, desaparecera. Dir-se-ia que se lhe
entranhara nas carnes. Apenas um ligeiro círculo vermelho
indicava o lugar em que o diabo o colocara.
Entrou
na sala onde se achavam seus pais e principiou a ocupar-se em
alguns serviços leves da casa.
—
Então, filha, perguntou-lhe o pai, ainda estás resolvida a
recusar o barão.
—
Mais do que nunca, meu pai.
—
Ah! Maria, exclamou a velha, estás cavando a nossa desgraça!
Sabes como é mau o barão; se recusas casar-te com ele, não
tardará ele a nos perseguir com toda sorte de injúrias. Ele pode
nos reduzir à miséria, pois bem sabes que teu pai deve-lhe
dinheiro.
— Pois minha mãe sabendo-o tão mau ainda quer que me
case com ele! Deixe estar, a sorte não nos há de abandonar.
— Deus, é que devias dizer minha filha!
disse a velha.
— Ora minha mãe, Deus não se ocupa com as
nossas misérias!
Os pobres pais sacudiram tristemente a cabeça.
Maria
continuou a tratar dos seus afazeres. Começou a pôr a mesa. No
momento, porém, em que pegou com a mão esquerda em um prato,
caiu-lhe este das mãos e partiu-se.
A moça estremeceu.
Contudo, não se deu por achada.
Sentaram-se
os três à mesa; na ocasião porém de Maria pegar no talher, o
cabo do garfo partiu-se-lhe na mão.
—
Oh! menina, que tens tu hoje? perguntou-lhe a mãe. A modo
que te acho mudada?
Estás doente?
— Não senhora.
Chegada
a noite trataram os velhos de se acomodar cedo. Maria recolheu-se
também ao seu quartinho e aí entregou-se a um longo cismar.
Dir-se-ia
que depois do seu pacto com o espírito maligno, Maria perdera de
todo aquela bondade de alma que a caracterizava. À sua mente só
vinham sonhos de grandezas e de luxo; via-se já cercada de inúmeras
riquezas, de mil alegrias e satisfações.
Aproximava-se,
porém, a meia-noite, hora marcada pelo demônio para a descoberta
do tesouro.
Maria,
que não queria que os pais suspeitassem do seu pacto, tratou de
arranjar um pretexto plausível para ir ao batatal.
Aproximou-se da janela de seu quarto, que dava
para o lugar marcado.
Legiões
de vaga-lumes pareciam dirigir-se para ele. Dir-se-ia um exército
bem disciplinado obedecendo às ordens de emérito general. Faziam
mil evoluções, vinham e iam, congregando-se todos, porém, em um
ponto só, onde esvoaçavam em círculo.
Depois de contemplá-los alguns momentos,
Maria achou o pretexto desejado.
Correu para o quarto do pai exclamando:
—
Meu pai! meu pai! venha ver uma coisa do meu quarto.
Os velhos acordaram sobressaltados e
levantaram-se sem demora.
—
O que há filha!
—
Venha meu pai! venha ao meu quarto!
Sem
hesitar os velhos acompanharam a filha. Maria conduziu-o para a
janela e mostrou-lhe os vaga-lumes que luziam com aquele brilho
que lhes é peculiar nos países tropicais.
—
Meu pai já viu tantos vaga-lumes assim juntos? perguntou
Maria.
—
Nunca! isso parece feitiçaria.
— Qual feitiçaria! disse a moça. Talvez
haja algum animal morto lá no batatal! Quem sabe se não é o
corpo de algum gato. Se eu fosse meu pai, ia ver.
— Estás douda, menina! disse a mãe. Aquilo
são obras do demônio!
E persignou-se.
Maria
riu-se, e depois de muito falar, de muito persuadi-lo conseguiu
que o velho saísse com ela ao batatal.
Foram
juntos; chegados porém ao lugar onde pareciam ter visto os
vaga-lumes estes haviam desaparecido.
—
Eu não digo! isto é feitiçaria, murmurou o velho.
—
Ora meu pai, deixe-se disso. Olhe, vou marcar o lugar e amanhã
cavaremos a terra.
—
Isso nunca!
—
Pois meu pai, se é feitiçaria razão de mais para tratarmos de
desfazê-la. Quem sabe se aí não haverá um tesouro escondido.
E riu-se.
O velho, imitando a mulher, contentou-se em
fazer o sinal da cruz.
Chegados à casa, a velha que os esperava à
porta, exclamou:
— Credo! menina! estás com os olhos luzindo
que parecem dous vaga-lumes.
Com
efeito, os olhos verdes da moça, que sempre tinham um reflexo metálico
luziam extraordinariamente.
— É que são olhos de gato minha mãe.
Entraram todos, e na sala então o velho
narrou à mulher a sua expedição.
—
Quem sabe, murmurou ela, talvez a Maria tenha razão! Ouvi sempre
minha mãe contar a história de um homem criminoso e assassino
que enterrou o dinheiro roubado, e que, foi afinal descoberto,
porque a alma do defunto vinha todas as noites, à meia-noite
colocar uma vela acesa no lugar do crime! Se eu fosse você, amanhã
iria ver.
O
velho, açulado pelas duas mulheres, prometeu cavar no dia
seguinte o lugar marcado por Maria.
Com efeito, na manhã seguinte o pai,
acompanhado pela filha foi cavar a terra.
À
certa profundidade bateu a sua enxó em um corpo duro, que em
breve mostrou ser um grande caixão.
A
muito custo foi ele içado da cova pelo velho e mais alguns homens
que Maria correra a chamar na vila.
Aberto
o caixão, descobriu-se nele uma grande quantidade de moedas de
ouro antiqüíssimas, e inúmeras pedras preciosas.
Não tardou que a notícia se espalhasse pela
povoação e pelas vizinhanças.
Não
cessavam as visitas aos velhos, e todos perguntavam a maneira por
que fora descoberto o tesouro.
Os pais de Maria, que nada tinham a ocultar
narravam fielmente o que ocorrera.
— Qual, seu Bernardo, diziam quase todos,
isso é obra do tinhoso!
Enfim,
tanto disseram, tanto martelaram os moradores da vila que os
velhos acreditaram na misteriosa intercessão do diabo na
descoberta das suas riquezas.
Trataram
de convencer a Maria do mesmo, rogando-lhe ao mesmo tempo que se
desfizesse daquele ouro.
—
Estão doudos! respondia ela. Não estão ainda fartos de passarem
uma vida de privações e misérias? Quando recusei dar a minha mão
ao senhor do engenho, os senhores não cessavam de chorar a sua
pobreza. Agora que possuem a riqueza não a querem! Façam o que
entenderem. Quanto a mim não desisti deste dinheiro, quero me
divertir!
Calaram-se
os velhos, e daí em diante não tocaram mais no assunto com
Maria. Não se utilizaram, porém, da sua nova riqueza,
continuaram a viver do mesmo modo, trabalhando como outrora.
Maria submeteu-se, pois via que seus pais
definhavam a olhos vistos.
Passados três meses morreu o velho, e poucas
semanas após ele, seguiu-se a velha.
Livre da vigilância dos pais, Maria
entregou-se à sua sede de luxo e de fausto.
Teve
trens riquíssimos, numerosos escravos, vestidos sem conta e jóias
como outras não havia.
Mandou
construir um palácio riquíssimo onde deu bailes e festas a que
concorriam quase todos os senhores de engenho das vizinhanças.
Os
habitantes da vila, porém, quase todos pobres e tementes a Deus,
como haviam sido os pais de Maria, evitavam-na.
Diziam,
que, quando chegava a noite, a moça, cujos olhos luziam na
escuridão como os olhos de gato, fugia para o mato onde se
demorava longas horas.
Diziam
que em sua casa não havia nem oratórios nem santos, que a moça
evitava a igreja e o diabo a cruz, e não tardaram muito em chamá-la
a “ possessa”.
Passaram-se
dez ou doze anos. Maria conservava-se
solteira, tendo sempre recusado todos os pedidos que lhe haviam
feito para casar-se, pois que a uma moça tão rica não faltaram
noivos.
Era
chegado o mês de maio. Em uma noite de luar, Maria saiu a
passeio, como costumava fazer freqüentemente.
Passando
por uma casa de pobríssima aparência, a moça ouviu pelas
janelas entreabertas a voz de uma criança entremeada com uma de
mulher.
Irresistível curiosidade levou-a a espreitar
pelo postigo.
Em
uma sala pobremente mobiliada, ajoelhados ante uma imagem da
Virgem alumiada por uma triste velazinha de cera, estavam mãe e
filho.
A
mãe, jovem ainda segurava nas suas as mãos postas do louro
filhinho e ensinava-lhe a balbuciar uma oração:
“Ave Maria...”
Maria,
estremeceu. Em um minuto perpassou-lhe na mente toda a sua existência
passada. Viu-se criança ajoelhada junto a sua mãe, aprendendo a
orar também; mais tarde, moça, cercada pelos desvelos de seus
pais até o momento fatal em que uma fatal alucinação a
entregara ao demo.
Dentro da sala as vozes continuavam a
murmurar.
“Bendita
dita [sic] sois entre as mulheres...
E
ela Maria! Era amaldiçoada! Para ela não existiam, nem nunca
poderiam existir as alegrias santas da maternidade! Para ela os júbilos
de esposa eram vedados.
“Rogai por nós, pecadores... continuavam as vozes
A mísera lá fora prorrompeu em pranto e caiu
de joelhos na terra úmida exclamando.
— Ah! sim! mãe santíssima, rogai por mim
pecadora arrependida!
Quanto
tempo permaneceu ali imóvel, debulhada em pranto, a arrependida
é impossível precisar.
A
mãe e o filho já se haviam recolhido; a lua ocultara-se atrás
dos montes de há longo tempo quando Maria regressou à casa.
....................................
No
dia seguinte a “Possessa” chamava o santo velho que era pároco
da vila e fazia-lhe doação do seu palácio para hospital de
caridade; além de avultada quantia para ser distribuída pelos
indigentes.
Aos escravos deu ela liberdade.
E
só, trajando vestes de luto, sem levantar a cabeça, sem se
despedir, Maria afastou-se da sua terra natal.
Só o velho padre teve para ela uma palavra de
afeição.
— É uma infeliz! murmurou ele.
Alguns
anos depois chegou à vila a notícia de uma mulher santa, que
vivendo na mais abjeta pobreza, praticava toda a sorte de obras de
caridade. Por toda parte onde chorava a miséria, onde a doença
ou a peste se mostrava, lá ia ela levar a esmola das suas consolações,
dos seus carinhos e desvelos. Não dizia a notícia, porém, que
essa mulher não se utilizava da mão esquerda que trazia sempre
oculta no seio.
....................................
Passados
uns dez anos chegou à vila uma mendiga doente pedindo asilo no
hospital fundado pelo vigário. Concederam-lho e poucos dias
depois faleceu ela. Foi enterrada no antigo cemitério, onde só a
acompanhou o velho vigário que murmurava:
— Era uma santa.
Não
há muito tempo, procedendo a exumação de cadáveres de um
antigo cemitério de uma cidade do interior de Pernambuco, afim de
trasladar os ossos para novo campo santo, encontrou-se um caixão
em que estava o cadáver de uma mulher em perfeito estado de
conservação, exceto a mão esquerda que se achava completamente
negra, como que carbonizada.
O protótipo de D. Juan
Todos conhecem a deliciosa ópera que Mozart escreveu, há
um século sobre o libreto do abade Del-Ponte; todos conhecem a
história de D. Juan, o libertino por excelência; todos se
lembram das astúcias de Leporello, as faceirices de Zerlina, os
ciúmes de Masetto, os lamentos de D. Ana, os furores de D.
Elvira, os suspiros de D. Otávio e a mão gelada do Comendador.
Antes de ter ouvido as sublimes melodias de Mozart sobre esta história,
já tínhamos lido nos livros alusões a ela, já tínhamos ouvido
a vovó contá-la. É uma espécie de legenda que atravessou séculos
e países e cujos personagens tornaram-se proverbiais.
Mas qual a origem desta legenda, qual a versão mais autêntica,
como foi que encontrou tão bom acolhimento no mundo? Eis o que
muito poucos sabem, e que no entanto merece ser conhecido.
Resumiremos em poucas palavras aquilo que é historicamente
conhecido a respeito de D. Juan.
A sua pátria é a Espanha, e não podia ser de outro modo.
Antigas crônicas andaluzas narram a vida do primeiro D. Juan,
dando Sevilha — pátria do Barbeiro — como a sua cidade natal,
e teatro das suas empresas amorosas. Estas crônicas porém
limitam-se a contar o fato da morte do Comendador, e as circunstâncias
que o acompanharam. Eis o que elas narram:
D. Juan Tenorio, de família nobre inscrita no número das
Vinte e quatro famílias patrícias de Espanha, matou em Sevilha o
velho Comendador Gonçalo de Ulhoa, o qual queria opor-se ao rapto
violento de sua filha, tentado pelo D. Juan. O cadáver foi
sepultado no convento de S. Francisco, onde a família possuía
uma capela, e sobre a sepultura colocaram uma estátua do defunto.
Quanto ao jovem fidalgo, o seu nascimento, e as suas relações
com famílias poderosas, livraram-no do braço da justiça. Porém
os frades franciscanos que conheciam a vida dissoluta de D. Juan e
queriam castigá-lo, conseguiram atraí-lo ao convento, onde o
mataram, satisfazendo assim a sede de vingança da família de
Ulhoa. Espalharam no entanto pela cidade a notícia que, tendo o
moço insultado a estátua do Comendador, esta o havia arrebatado,
e precipitado por entre as fendas do assoalho que se havia aberto,
no fogo do inferno. Com o tempo esta invenção dos frades
substituiu a verdade, e a Igreja ganhou com isso mais um exemplo
para citar aqueles que desprezam a justiça divina, e ao mesmo
tempo, sem o saber, tornou-se benemérita da poesia. Não é a
primeira vez que esta deve ter dado à Igreja o mérito de uma
bela invenção.
Quando foi publicado o D.
Juan de Byron, alguns críticos ingleses puderam certificar
que uma nobre família de fidalgos de nome Tenorio havia com efeito existido na Andaluzia, e
que o nosso herói fora o filho mais moço de um célebre
almirante Tenorio, amigo íntimo do rei castelhano, Pedro, o
cruel, companheiro dos seus deboches, instigador das suas
crueldades. A época das extravagâncias de D. Juan deve pois ter
sido pela segunda metade do século décimo quarto.
O fim medonho de D. Juan perpetuou-se na memória do povo,
e para pô-la sempre em maior harmonia com a justiça suprema, a
pessoa do herói com o andar do tempo foi tomando proporções
cada vez maiores; ele tornou-se um sedutor de profissão,
desprezando as coisas mais sagradas, a personificação do vício
audaz e estouvado. Deste modo, pouco a pouco foram-lhe atribuídos
muitos outros fatos e episódios, entre os quais o seguinte:
Depois de ter passado na orgia um dia inteiro, D. Juan foi
à tarde passar nas margens do Guadalquivir, e vendo um outro
personagem passeando na margem oposta pediu-lhe cinicamente, fogo
para o seu cigarro. Imediatamente o outro estendeu o braço, e
estendeu-o tanto que D. Juan pode acender o seu cigarro com o
cigarro do desconhecido, o qual era o diabo em pessoa, porém não
conseguiu intimidar de modo nenhum ao nosso herói.
Esta aventura, como se pode conhecer pela alusão ao uso de
fumar, só foi atribuída a D. Juan alguns séculos depois,
naquela época em que todo aquele que levasse vida desregrada,
tinha reputação de ser íntimo do diabo.
A tradição manteve-se assim por longo tempo entre o povo,
e foi só depois de três séculos que um poeta lembrou-se a
valer-se dela e tomá-la para argumento de uma obra de imaginação.
Um frade pregador, Gabriel Tellez, conhecido na literatura
espanhola sob o nome de Tirso de Molina, autor de muitas obras
dramáticas publicou em 1634 um drama com o título de: El
burlador de Sevilla y convidado de piedra cujo herói é D.
Juan. Deste tempo em diante os seus gestos e feitos começaram a
ser conhecidos fora da Andaluzia, e ele tornou-se uma espécie de
tipo cosmopolita, como tornaram-se em grande parte os outros
personagens do drama.
O primeiro pois que tornou D. Juan célebre, e deu o
argumento para tantas obras dramáticas, românticas, poéticas e
musicais, foi Tirso de Molina; será portanto agradável ver como
ele combinou os elementos que lhe foram dados pela tradição, com
as criações de sua fantasia.
Desde a primeira cena encontramos D. Juan ocupando-se
exclusivamente de suas conquistas. Apenas chegado em Nápoles,
junto ao tio embaixador de Espanha, tendo fugido de Sevilha, para
evitar as conseqüências de uma afronta que aí fizera a uma
fidalga, acha um meio de penetrar à noite nos aposentos da
duquesa Isabel, disfarçado com a roupa de D. Otávio, noivo da
jovem fidalga. A duquesa descobrindo o engano a tempo grita por
socorro, e aparece o rei, o qual faz prender a D. Juan e o entrega
às guardas do embaixador. Este facilita-lhe a fuga, e hei-lo
sobre o mar, e depois náufrago numa praia desconhecida. A filha
de um pescador, vendo o belo moço desmaiado o recolhe na sua
cabana e chama-o à vida. D. Juan abre os olhos, e o seu primeiro
pensamento não é o de alegrar-se por ter escapado à morte, mas
o de ter a fortuna de achar-se perto de uma moça encantadora.
Abre a boca, não para agradecê-la, mas para fazer-lhe um
cumprimento, e em pouco tempo esta é vítima das suas seduções.
A pobrezinha aprende já muito tarde quanto é mais perigoso
pescar homens do que peixes, e depois de ter ajudado o infiel a
fugir, descobrindo o seu engano, precipita-se no mar.
D. Juan no entanto volta para Sevilha, aonde também fora
D. Otávio para acusá-lo ante os tribunais da injúria feita a
sua noiva. O rei de Sevilha o exila da cidade; mas D. Juan
rindo-se dos lamentos de seu pai que lhe mostra a indignidade das
suas ações, só se lembra de juntar mais uma aventura às
outras. Desta vez trata-se da amante de um amigo, ¾
mas nestas coisas ele não conhecia amigos. Cobrindo-se com a capa
vermelha do jovem, ele tenta enganar a bela, mas de novo é
descoberto. A moça é D. Ana, filha do Comendador Gonçalo de
Ulhoa. Aos gritos da filha aparece o comendador que acomete a D.
Juan, e é por ele morto. D. Juan foge, e o amigo, amante de D.
Ana, que entra naquele momento é preso como o assassino.
No entanto o nosso herói vai a um casamento de camponeses,
onde a noiva tem a desgraça de agradá-lo e ele com muita astúcia
consegue afastar o noivo ciumento. Dá-lhe a entender que a moça
já havia faltado à fé jurada, e que pois uma tal esposa não
era digna dele; o estúpido camponês acredita e abandona a
mulher. D. Juan torna-se o senhor do campo e com quatro
palavrinhas doces e alguns juramentos calorosos, conquista o coração
da bela camponesa.
Aqui terminam por ora as aventuras amorosas do nosso herói.
As donzelas abandonadas por ele preparam a sua vingança
conjuntamente com as senhoras traídas. A arrogância de D. Juan
chega ao seu auge e ele acaba por desafiar as potências celestes.
Acompanhado por seu criado Catalinon, que pela superstição e a
timidez faz um curioso contraste com o seu amo, e que murmura
sempre das suas ações sem nunca se resolver a abandoná-lo, vê
por acaso a estátua do Comendador, e com ar de mofa convida-a
para uma ceia. A estátua aceita e cumpre a sua palavra. O
atrevido D. Juan promete por sua vez à estátua, que irá no dia
seguinte a uma outra ceia que esta lhe oferece na capela onde se
acha o túmulo do Comendador.
No entanto o rei impõe a D. Juan que se case com a duquesa
Isabel, e ele consente, mas quer primeiro cumprir a promessa feita
à estátua. Começa o banquete na capela. Coros invisíveis
entoam o Dies irae; os
manjares compõem-se de escorpiões e serpentes, em vez de vinho
servem tinta; o humor tétrico dos convidados torna ainda mais
triste esta horrível ceia. Acabado o banquete, o hóspede marmóreo
levanta-se e, estendendo a mão destra a D. Juan, exclama:
¾
Agora dá-me a tua mão.
¾
Oh! estou ardendo, grita D. Juan, o fogo me devora.
¾
Não é senão o princípio dos teus tormentos futuros, responde a
estátua.
D. Juan tenta feri-la com um punhal, mas a estátua não
passa de um fantasma. Desesperado ele pede um confessor.
¾
É muito tarde! responde-lhe o Comendador, e ambos são envolvido
pelas chamas. A capela arde, e Catalinon encolhe-se num canto e
termina a cena.
Depois desta horrível catástrofe, o drama continua com as
aparências de uma comédia. Todos os casamentos impedidos por D.
Juan concluem-se felizmente, e deste modo termina a ação.
Temos já, pois, todos os personagens da ópera de Mozart,
exceto D. Elvira; o protagonista e o seu criado, que chama-se aqui
Leporelo; D. Ana, D. Otávio, Zerlina e Masetto. É necessário
porém notar que na catástrofe do libretto,
D. Juan conserva-se sempre insolente até o fim: sem confissão,
sem arrependimento, ele luta até a última hora com o céu, e é
precipitado no inferno vencido mas indomado.
No mais os caracteres conservaram-se pouco mais ou menos,
como os escreveu Tirso de Molina; notamos principalmente o
contraste entre o audaz D. Juan, que segue sem escrúpulos o
impulso do seu instinto sensual, e o sentimental e sempre
hesitante D. Otávio. Somente o personagem de D. Ana assumiu na ópera
de Mozart proporções muito maiores e o de D. Elvira, não é
original, mas introduzido por Molière.
Molière também escreveu um drama sobre o mesmo assunto,
intitulado D. Juan, ou o
banquete de D. Pedro.
Nesta composição, D. Juan apareceu casado; ele raptou D.
Elvira do convento e a desposou. A vida conjugal, porém não o
agrada, dela se aborrece e abandona a D. Elvira para correr em
busca de novos amores. Elvira o segue e procura no correr de todo
o drama, chama-o à virtude e a si. O seu coração, como no
melodrama de Mozart, está sempre dividido entre o ódio e o amor.
O D. Juan de Molière, não tem o mesmo caráter que o de Tirso de
Molina. Molière imaginou um filósofo epicureu e ateu, que faz
discursos; o herói de Molina era no entanto um bom católico que
não negava a sua fé e que sabia que a justiça divina havia de
puni-lo algum dia, mas também acreditava que essa catástrofe
viria mais tarde, e portanto gozava da vida enquanto era tempo.
Uma terceira recomposição da comédia de Molière foi
feita por Goldoni, mas esta não diverge do original senão no
castigo do culpado que em vez de ser precipitado no inferno é
morto pelo raio.
O argumento prestava-se admiravelmente ao teatro e aos
gostos daquela época; vemos que mais tarde ofereceu matéria para
um bailado cuja música foi escrita por Gluck, e depois um libreto
para a ópera escrita por um certo Righini.
Mas quem deu-lhe a celebridade de que hoje ainda goza, foi
o Abade Del-Ponte, que em 1787 escreveu um outro libreto de ópera
cuja música foi composta por Mozart, e representada no mesmo ano
em língua italiana no teatro de Praga.
Isto porém não fez cessar o aparecimento dos numerosos D.
Juans; ao contrário o sucesso da ópera de Mozart fez
aparecer uma série inúmera de imitadores em todos os países e
em todas as literaturas, e que criaram um número quase infinito
de D. Juans bem pouco
parecidos com o seu protótipo.
Na Espanha, além de D. Juan Tenorio, era conhecido um
outro D. Juan de Marena. Ambos rivalizavam pela sua vida
extravagante e dissoluta; mas os seus fins eram bem diversos. D.
Juan de Marena, na ocasião de raptar uma freira tem uma visão
que lhe representa a cena da sua própria morte; isto o
impressiona tanto que ele arrepende-se e faz-se frade. O seu
remorso então torna-se tão violento quanto era a desordem da sua
vida passada; ele martiriza-se continuamente, e na hora da morte
pede que o enterrem debaixo do assoalho da igreja a fim que todos
o tenham debaixo dos pés. Comparando-o com o selvagem D. Juan da
tradição, pode-se chamar a este um D. Juan amansado. Merimée, o
espirituoso escritor francês, deixou uma novela sobre este
assunto intitulada: As almas
do purgatório ou os dois D. Juans.
Apesar das numerosas obras escritas sobre o mesmo assunto,
por tantos poetas que têm procurado mudar a fisionomia característica
de D. Juan para lhe dar uma aparência mais humana, o povo
conservou-se sempre fiel ao original e não se recorda nem aprecia
outro. As imitações, as cópias desapareceram e o original
conservou-se em todo o seu primitivo e singular brilho. É verdade
que para conservá-lo sempre na memória de todos a música sempre
maviosa, sempre fresca de Mozart vale mais do que a extravagante
legenda espanhola, mais do que a comédia de Molina, mais do que
os versos de Del-Ponte.
O nome de D. Juan acha-se ligado indissoluvelmente ao de
Mozart, como o Barbiere
ao de Rossini, como a Norma
ao de Bellini.
É a arte que vive eterna, e vivifica tudo quanto a cerca.
Ilustração do
Brasil. Rio de Janeiro, jun. 1878.
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