Verbete organizado
por:

Constância Lima Duarte

 



Emília Freitas


Textos:

 

Uma lembrança

Quem pode dizer que em chão de rosas

Vagou sem cravar-se nos espinhos?

Aquele que partiu cá deste mundo

Na idade em que a vida é só carinhos.

I

Refulgia num céu cor de açucena

As douradas nuvens do romper do dia

E por entre as flores da grinalda angélica

Nas brancas ondas de cetim dormia,

Um louro anjinho que a sonhar delícias

Pra Eternidade com prazer sorria.

E da mãe que a um lado soluçava aflita

Nem pode ouvir o doloroso pranto,

No imenso espaço ele estendendo as asas

Voou, sumiu-se, repetindo um canto

Que ressoava na celeste abóbada

Pelos luzeiros do azulado manto!

II

E em que parou teu derradeiro olhar

Quando partias deste mundo vário?

Sim, foi na estrela que guiou solícita

Teus tenros passos oh! ditoso Mário!

Ela tem sido da virtude símbolo,

Da fé sua alma é mais fiel sacrário!

 

Lamenta um berço convertido em túmulo,

Chora a lembrança de um inocente amor;

Mas é tão calmo! Tão feliz! Tão doce!

Quando da morte ceifadora mão

No peito planta-nos da saudade - a flor.

(Fortaleza, fevereiro de 1878)

 

A rainha do ignoto

Resumo: Dr. Edmundo, moço rico, formado em Recife, viaja aos sertões do Ceará. Aos poucos, deixa-se envolver por um certo clima de mistério do lugar, principalmente após ter a visão de uma mulher vestida de branco, com cabelos soltos e grinalda de rosas, que passa em um bote, à noite, no rio Jaguaribe, que tem um comportamento estranho, além de se fazer acompanhar de seres encantados. Impressionado, Edmundo tenta obter informações sobre a mulher e fica obcecado em desvendar o segredo daquela que os nativos chamavam ora de Funesta, ora de Fada do Arerê. Usando de um disfarce e do auxílio de Probo, marido de uma empregada da Rainha, consegue penetrar nos seus domínios - um mundo praticamente dominado pelas mulheres -, e transforma-se em testemunha das benfeitorias que a mulher vai distribuindo entre as pessoas mais humildes e injustiçadas. Após inúmeras peripécias, a Rainha do Ignoto resolve que devia morrer, levando consigo seu segredo. Durante sua agonia, faz discurso, toca, canta e deixa, enfim, transparecer aos que a cercam sua verdadeira face. Os trechos selecionados mostram o momento em que Dr. Edmundo penetra nos domínios da Rainha e, ao mesmo tempo, começa a desvendar seu mistério.

 

"A ingratidão, uma víbora entre flores"

Era quase meio-dia quando o Dr. Edmundo despertou, quase sem se recordar do lugar onde estava.

Esfregando os olhos ainda sonolentos, procurou coordenar as idéias; sentia a cabeça pesada, e lhe pareceu ter sonhado muito no desacordo de uma febre intensa.

De pouco a pouco foi reconhecendo seu erro, e se persuadindo de seu modo de ser entre aquela gente singular.

Ele correu a vista pela mobília do quarto e achou que, apesar de rica, não tinha nada de gentil nem de atraente; não se via ali esses pequenos nadas que caracterizam o quarto de uma moça: fitas, leques, perfumes, caixas de pós, flores, figurinhas de biscuit e muitas outras insignificâncias

- Que ornatos esquisitos! Disse ele consigo, fitando uma tosca cruz de madeira que se erguia da cúpula do cortinado da cama, que era de renda preta.

Nos braços da mesma cruz estavam enramadas ervas e flores secas. Para onde ele lançava a vista via disparates e extravagâncias.

Então lembrou-se que estava representando Odete, e que havia dormido no quarto e no leito que fora de uma doida.

Apressou-se em deixar aquele aposento contristador para ir ter com Probo. Não vendo o velho no palácio, desceu ao jardim, e ficou passeando ao longo de uma ruazinha de murtas.

O Dr. Edmundo olhava pasmado para o palácio do Ignoto e dizia a meia voz.

- Não é mentira, nem conto de fada... ali está a escadaria e o pátio, tudo de mármore! A balaustrada das escadas e varandas, tudo de coral com frisos de ouro!

Cada vez mais ele admirava e descobria deslumbramentos; as próprias varandas eram de prata cinzelada, onde se viam embutidas diversas figuras de pássaros e de flores, com diferentes matizes formados pelo engaste de pedras finas e preciosas!

Aquele palácio era como o sol! Não se podia fitá-lo por muito tempo. Nele estava o gosto artístico de um verdadeiro pintor, com os retoques de um ideal de poeta!

Os jardins eram uma surpreendente maravilha! Havia neles todas as flores de cujo desabrochar Lineu compôs um relógio, de forma que eram as pétalas recendentes desses mimos da natureza que ali marcavam as horas saindo do cálice, onde estiveram em botão.

Tudo quanto a Botânica e a Zoologia possuem de belo, de raro e de precioso os jardins do Ignoto ostentavam, bem ordenado e classificado por mão de mestre!

As dependências eram uma cidade ativa pela fumaça das fábricas que trabalhavam, pelo bater do ferro nas oficinas e pela voz das crianças nas escolas.

O Dr. Edmundo andava perdido, de admiração em admiração, aproximando-se de tudo que lhe causava curiosidade. Cansado de andar, fatigado de surpresas, parou junto a um banco de jaspe sombreado por um jasmineiro, e sentou-se.

De repente, uma mão desenlaçou os ramos de duas roseiras, e passou entre elas a figura elevada de Probo, um verdadeiro Moisés bíblico, com sua longa barba branca.

- Há que tempo o procurava, disse ele, estendendo a mão ao Dr. Edmundo, e sentando-se a seu lado.

- Posso falar aqui, não há perigo? Perguntou o moço em voz baixa.

- Não há; estamos bem, podemos conversar à vontade; sabe o que disse a rainha hoje pela manhã: que estava estranhando Odete, pois que sempre àquela hora lhe vinha trazer um ramo de amores-perfeitos... e não a tinha visto ainda.

- Devo ir logo levar-lhe o ramo? Perguntou o Dr. Edmundo.

- Não, agora será fora de tempo; o sol já vai alto e pende para tarde.

- Supus que não acordasse tão cedo, principalmente depois de uma sessão que terminou quase às cinco horas da manhã.

- Ora, doutor, cuida ainda lidar com uma dessas fidalgas enervadas pelos cômodos e mimos da vida? Engana-se, o título de rainha, segundo dizem, não lhe vem pelo gozo, vem pelo martírio. É um espírito de ferro inclinando, dobrando, movendo um corpo que fecha na mão como uma luva de seda! Para esta mulher não há dia nem noite, há somente a necessidade de momento! Ela deita-se sempre calçada, atacada, e pronta para seguir a qualquer ponto! Tem o sono tão leve que poderia despertar ao rumor sutil de uma pétala de rosa lançada na água.

- Oh! Exclamou o Dr. Edmundo, mas, por que tanta inquietação? Julga-se cercada de perigos? Tem muitos inimigos?

- Nada, disse o velho, é que ela é a força centrífuga dessa sociedade de malucas...

- Por que as chama malucas?

- Porque são mesmo. Não vê o senhor uma fortuna como esta tão mal empregada em benefícios que só elas conhecem. Vivem errantes, obscuras, perdidas no seio da humanidade, como as areias no fundo do oceano, no seio das vagas, quando podiam gozar de tudo que é dado na vida ao poder do ouro!

- E fazer bem ao próximo, não é uma virtude recomendada por Cristo?

- E pensa o senhor que esta maçonaria de mulheres não tem um desígnio funesto para o país?

- Qual! Sr. Probo, elas só têm coração e fantasias.

- Ai! Ai! Eu cá sei, já não denunciei-as à polícia por falta de provas... mas, meu amigo, disse o velho com mistério, eu não lhe dei entrada aqui com outro fim, foi para ajudar-me a descobrir a trama e lavá-la ao conhecimento do governo.

- Mas, senhor, o que tem o governo que ver com elas? Disse o Dr. Edmundo, indignado, sem fitar o rosto daquele velho ingrato e traidor, que já lhe estava causando asco.

- O que tem o governo que ver com elas? Tem muito: ele não autorizou esta sociedade secreta... Este tesouro acumulado na mão deste diabo deve ser considerado um crime! Ela não podia explorar as minas da ilha e explora; não contente com isso, funda, com nomes imaginários, casas comerciais, fábricas, engenhos, centros de lavoura e grande criação de gado, de forma que tem, em todas ou em quase todas as províncias do Brasil, um rendimento fabuloso! E para quê? Para desperdiçar em fantasias loucas! Em benefícios extravagantes! Em fazer mal à propriedade alheia, pois rouba ao senhor para dar ao escravo. Que absurdo! É abolicionista! Já eu a ouvi dizer que não há lei alguma de direito humano que possa escravizar um cidadão, que a condição de escravo resultou de um abuso da força contra a fraqueza, e urge reagir...

- Tem idéias alevantadas e sãs, disse o Dr. Edmundo.

- Que sãs?! exclamou Probo exaltado. Veja, examine o que ela teve a petulância de declarar em um discurso que fez, na última sessão do Nevoeiro: "A pena última é o recurso dos governos impotentes para regenerar o criminoso pela instrução e pelo trabalho".

- Bem pensado! senhor Probo.

- Bem pensado, também incutir no ânimo dos que a rodeiam que o rei é o produto da ignorância dos povos antigos, que ainda não estavam em estado de governarem-se e formar uma república.

- Bravo! Uma rainha republicana!

- Como Robespierre! Ou como Danton! Acrescentou Probo.

- E o senhor quer-lhe mal por isso?

- Não é só por isso, senhor Edmundo, é por muitas outras idéias subversivas... Para não faltar-lhe mais nada do que sublevar é espírita!

- Espírita! mais este crime! disse o Dr. Edmundo zombando.

- O senhor zomba porque não conhece os males que ela causa às mais santas instituições, como sejam: ao direito de propriedade dos senhores, à monarquia e à religião.

- E que faz ela para destruir esta trindade?

- O senhor há de ver, como eu tenho visto. Olhe, aqui na ilha não há templo católico, nem de religião alguma, há somente sessões espíritas, na biblioteca, onde ela possui todas as obras de Alan Kardec, de Flammarion e outros malucos como ela. Enfim, o senhor verá. [.......]

O Dr. Edmundo pensou ainda alguns instantes em tudo o que ouvira e, vendo Probo se afastar pela alameda do jardim, disse consigo:

- É uma víbora entre flores!. [......]

Depois do almoço, que terminou às duas horas da tarde, a Rainha do Ignoto, acompanhada pelas paladinas e as enjeitadas, entrou no salão de honra do palácio. Aquele compartimento era o primor da fantasia: o ideal do gosto, do belo e do sublime.

O estranho que, como o Dr. Edmundo, transpusesse pela primeira vez os seus umbrais, ficaria, como ele ficou, de pé, pasmado, soerguendo o reposteiro com uma mão e com a outra buscando o coração que parecia sem pulsações.

Estava indeciso, sem saber se devia pisar com o tacão das botas aquele tapete aveludado, macio, de onde se exalava um perfume delicioso e enlevado!

As crianças se espalhavam por ele, correndo, saltando, ou antes, a voar, como um bando de avezinhas pipilantes ao deixar o ninho.

As cadeiras estufadas de veludo carmesim, com franjas de ouro e bordadas a seda, pérolas e diamantes, eram atropeladas pelas pequenitas que também queriam acompanhar as maiores numa valsa doida como a alegria que se manifestava nos semblantes daquelas enjeitadas felizes.

O som do piano, que a mais crescida delas tocava com perfeição, enchia o espaço duma música viva, como o raiar do sol num dia de primavera. [......]

A menina do piano chamava-se Helena, e já tinha quinze anos feitos; era um tipo ideal de beleza! Uma rosa entreaberta, uma alvorada anunciando o sol! Ela tinha o porte altivo, os modos distintos, o olhar profundo e sério, e os lábios sempre cerrados por uma leve sombra de tristeza, ou contraídos pela ironia.

Estava claro em seu semblante inteligente o muito que ela compreendia de sua condição no mundo; via-se bem o quanto lhe estava a doer, em sua vaidade de formosa, o nome de enjeitada.

A Rainha do Ignoto fitou-a por alguns instantes, acompanhando seus finos dedos sobre o marfim do teclado, e disse:

- Pobre menina! Receio muito que tu não sejas feliz; mas eu serei o teu anjo da guarda. [......]

Helena cessou de tocar, o piano calou-se e as crianças, exaustas da dança, caíam rindo sobre o tapete e enterrando nele as mãozinhas, como em macia relva. Outras agarravam-se ao rendilhado dos móveis ou aos pés dos grandes vasos de ouro que, espalhados pela salão, sustentavam enormes tufos de flores.

Helena acudiu a um aceno da Rainha do Ignoto e sentou-se ao lado da doutora Clara Benício.

- Estás contente com a viagem que vamos fazer, Helena? Perguntou a Rainha do Ignoto.

- Que alegria me pode causar o tumulto das grandes cidades, senhora? Disse a menina, baixando os olhos negros e de longos cílios aveludados. Aqui, entre minhas companheiras e mestras, sou digna de ombrear com todas; lá... serei uma menina sem família ... uma enjeitada. [......]

- Ó Deus! Como a solidão faz o espírito amadurecer depressa! Exclamou a Rainha do Ignoto. Esta menina fala como uma senhora. Não, Helena, não te leves por essas idéias; sou eu quem se compromete a te fazer feliz; ouve: se não tens o nome de teu pai, terás o dum esposo muito digno, muito nobre por suas qualidades. [......]

A Rainha do Ignoto guardou silêncio e escutava com delícia o alarido que faziam as enjeitadas nos brinquedos que inventavam com muito espírito.

Era muito condescendente com elas, tinha imaginado dar-lhes todo o carinho que lhes fora negado pelas mães, e por isso escolheu para empregar no Ninho dos Anjos viúvas que, por ocasião de naufrágio, incêndio, guerra ou epidemia, tinham perdido o marido e os filhos, porque assim fazia duas restituições, dando mães a filhos sem mães e dando filhos a mães sem filhos. Só elas poderiam ter essa dedicação maternal, impossível nos corações ressequidos pelo misticismo da religião e do claustro.

(A Rainha do Ignoto. Romance psicológico. 2 ed. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, Imprensa Oficial do Ceará, 1980.)