Alcoólicas
de
Hilda Hilst
É crua a vida. Alça
de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um
naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços,
Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos
ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela
rua
Rubras, góticas, altas de corpo
e copos.
A vida é crua. Faminta como o
bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica:
arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é
líquida.
(Alcoólicas - I)
* * *
Também são cruas e duras as palavras
e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa,
tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida.
Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas
d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e
do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas
de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no
teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso.
O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista.
Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois
deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos
cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
(Alcoólicas - II)
* * *
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que
condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas,
drenos
E afasta-se de nós o sólido de
fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias.
Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio,
e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida
é plena.
(Alcoólicas - IV)
* * *
Te amo, Vida, líquida esteira
onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado
rosado
Salpicado de negro, de doçuras
e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um
Mais
Conquistando um fulcro potente
na garganta
Um látego, uma chama, um canto.
Amo-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me.
Sou menos
Quando não sou líquida.
(Alcoólicas - V)
(in Do
Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)
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