Verbete organizado
por:

Anselmo Peres Alós

 



Lila Ripoll

 

Textos:

Deus quis assim...

                Não saberás quanto sofri,

                Nem saberás por que morri.

 

                Mudei de vida e de pensar:

                - agora até sei enganar.

 

                Olho serena para a frente

                e espero tudo indiferente.

 

                Ninguém transforma a própria sorte:

                Deus quis assim... ele é mais forte!

 

                Andei por todos os caminhos.

                Nada colhi. Trouxe os espinhos.

 

Se alguém tecesse uma coroa,

eu era Santa, e pura, e boa.

 

Mas eu não quis. Pra que ser Santa?

Sofre-se igual. Nada se adianta.

 

E uma coroa, com certeza,

deve pesar mais que a pobreza.

 

e eu sendo Santa nem sequer

podia ser uma Mulher.

 

Assim sem manto e sem altar

meu coração pode pulsar.

 

Posso ter livre o pensamento,

que é, quase sempre, o meu tormento.

 

Por mim ninguém esperará,

nem o meu nome invocará.

 

Ninguém dirá que me pediu

e que depois morreu de frio.

 

Assim sem manto e sem altar

meu coração pode pulsar.

 

(In: Ilha difícil, pp.18-19.)

 

 

Piano

 

A voz do piano

vem de longe.

De muito longe.

Densa. Espessa.

Lamentosa.

 

Voz retrospectiva.

Voz saudade.

Às vezes plácida,

modesta. Em confidência.

Mas sempre substância

difícil. Território

escondido. Corredor

de impossível transitar.

 

Vem de longe a voz

do piano. De muito longe.

Vem como rio na enchente.

Transportando pessoas,

móveis, crianças

com brinquedos,

flores, papéis

e passarinhos mortos.

 

Vem como um rio na enchente

a voz do piano.

 

(In: Ilha difícil, p. 26.)