Verbete organizado
por:

Anselmo Peres Alós

 



Patrícia Rehder Galvão (Pagu) 

 

Textos:

              

             

Parque industrial

 

RESUMO: tal como sugere o subtítulo Romance proletário, a novela de Pagu traz a história de opressão das classes baixas da sociedade paulistana, ambientada no momento em que a industrialização de São Paulo faz com que a cidade mereça o título de “maior parque industrial da América do Sul”. Prostitutas, burgueses, anarquistas e proletários são os personagens que desfilam pela obra, mostrando a turbulência dos anos 30 através de uma das experiências mais típicas da escritura modernista, a narrativa urbana. O trecho selecionado é o capítulo de abertura de Parque industrial, onde é apresentada Rosinha Lituana, uma das protagonistas mais marcantes da narrativa.

 

 

                “Teares”

 

                São Paulo é o maior parque industrial da América do Sul: o pessoal da tecelagem soletra no cocoruto imperialista do “camarão” que passa. A italianinha matinal dá uma banana pro bonde. Defende a pátria.

               

                - Mais custa! O maior é o Brás!

               

                Pelas cem ruas do Brás, a longa fila dos filhos naturais da sociedade. Filhos naturais porque se distinguem dos outros que têm tido heranças fartas e comodidade de tudo na vida. A burguesia tem sempre filhos legítimos. mesmo que as esposas virtuosas sejam adúlteras comuns.

 

                A rua Sampson se move inteira na direção das fábricas. Parece que vão se deslocar os paralelepípedos gastos.

 

                Os chinelos de cor se arrastam sonolentos ainda e sem pressa na segunda-feira. Com vontade de ficar para trás. Aproveitando o último restinho de liberdade.

 

                As meninas contam os romances da véspera, espremendo os lanches embrulhados em papel pardo e verde.

 

                - Eu só me caso com um trabalhador!

 

                - Sai azar! Pra pobre basta eu. Passar a vida inteira nesta merda!

 

                - Vocês pensam que os ricos namoram a gente a sério? Só pra debochar.

 

                - Eu já falei pro Bráulio que se é deboche, eu escacho ele.

 

                - O Pedro está ali!

 

                - Está te esperando? Então deixa eu cair fora!

 

                - O grito possante da chaminé envolve o bairro. Os retardatários voam, beirando a parede da fábrica, granulada, longa, coroada de bicos. Resfolegam como cães cansados, para não perder o dia. Uma chinelinha vermelha é largada sem contraforte na sargeta. Um pé descalço se fere nos cacos de uma garrafa de leite. Uma garota parda vai pulando e chorando alcançar a porta negra.

 

                O último pontapé na bola de meia.

 

                O apito acabara num sopro. As máquinas se movimentam com desespero. A rua está triste e deserta. Cascas de bananas. O resto da fumaça fugindo. Sangue misturado com leite.

 

*

 

                Na grande penitenciária social os teares se elevam e marcham esgoelando.

 

                Bruna está com sono. Estivera num baile até tarde. Pára e aperta com raiva os olhos ardentes. Abre a boca cariada, boceja. Os cabelos toscos estão polvilhados de seda.

 

                - Puxa! Que este domingo não durou... Os ricos podem dormir à vontade.

 

                - Bruna! Você se machuca. Olha as tranças! 

 

                É o seu companheiro de perto.

 

                O chefe da oficina se aproxima, vagaroso, carrancudo.

 

                - Eu já falei que não quero prosa aqui!

 

                - Ela podia se machucar...

 

                - Malandros! É por isso que o trabalho não rende! Sua vagabunda!

 

                Bruna desperta. O moço abaixa a cabeça revoltada. É preciso calar a boca!

 

                Assim, em todos os setores proletários, todos os dias, todas as semanas, todos os anos.

 

                Nos salões dos ricos, os poetas lacaios declamam:

 

                - Como é lindo o teu tear!

 

*

 

                - Vá lá na latrina que a gente conversa.

 

                A moça pede:

 

                - Dá licença de ir lá fora?

 

                - Outra vez?

 

                - Estou de purgante.

 

                As paredes acima do mosaico gravam os desabafos dos operários. Cada canto é um jornal de impropérios contra os patrões, chefes, contramestres e companheiros vendidos. Há nomes feios, ensinamentos sociais, datiloscopias.

 

                Nas latrinas sujas as meninas passam o minuto de alegria roubada ao trabalho escravo.

 

                - O chefe disse que agora só pode vir de duas em duas!

 

                - Credo! Você viu quanta porcaria que está escrito?

 

                - É porque aqui antes era a latrina dos homens!

 

                - Mas tem um versinho aqui!

 

                - Que coisa feia! Deviam apagar...

 

- O que quer dizer essa palavra “fascismo’?

 

                - Trouxa! É aquela coisa do Mussolini.

 

                - Não, senhora! O Pedro disse que aqui no Brasil também tem fascismo.

 

                - É a coisa do Mussolini sim.

 

- Na saída a gente pergunta. Chi! Já está acabando o tempo e eu ainda não mijei!

 

                Cavalga a bacia baixando as calças de morim.

 

                Duas outras operárias chegam, batem na porta com força.

 

                - Agora é a nossa veiz!

 

                - Desgraçado! Me deu nó nas carça! Vê si você me desmancha.

 

*

 

                Saem para o almoço das onze e meia. Desembrulham depressa os embrulhos. Pão com carne e banana. Algumas esfarelam na boca um ovo duro.

 

                Três negrinhas lêem no Braz Jornal a página dos namorados.

 

Na grade ajardinada um grupo de homens e mulheres procura uma sombra. Discutem. Há uma menina calorosa. As outras lhe fazem perguntas.

 

                Um rapazinho se espanta. Ninguém nunca lhe dissera que era um explorado.

 

                - Rosinha, você pode dizer o que a gente deve fazer?  

 

                Rosinha Lituana explica o mecanismo de exploração capitalista.

 

                - O dono da fábrica rouba de cada operário o maior pedaço do seu dia de trabalho. É assim que enriquece às nossas custas!

 

                - Quem foi que te disse isto!

 

                - Você não enxerga? Não vê os automóveis dos que não trabalham e a nossa miséria?

 

                - Você quer que eu arrebente o automóvel dele?

 

                - Se você fizer isso sozinho, irá para a cadeia, e o patrão continuará passeando noutro automóvel. Mas, felizmente, existe um partido, o partido dos trabalhadores, que é quem dirige a luta para fazer a revolução social.

 

                - Os tenentes?

 

                - Não! Os tenentes são fascistas.

 

                - Então o quê?

 

                - O Partido Comunista...

 

*

 

                Novamente as ruas se tingem de cores proletárias. É a saída da fábrica.

 

                Algumas têm namorados. Outras, não. Procuram. Mães saem apressadas para encontrar em casa os filhos maltratados que nenhum gatuno quer roubar.

 

                A limusine do gerente chispa espalhando o pessoal. Uma menina suja alisa o paralama com a mão chupada.

 

                Rosinha passa um pente desdentado nos cabelos que esvoaçam. Ao seu lado vai um bandido. Uma garota terna lhe envolve a cintura com braços morenos. É Matilde, filha da Cléo, que começou na vida e agora está na ribalta.

 

                - Por que você não entra no sindicato?

 

                Matilde brinca com os cachos.

 

                - Eu vou entrar para a Escola Normal. Mamãe não quer que eu trabalhe mais.

 

                Uma menina coroada, cheia de animação, relata.

 

                - Se você conhecesse o Miguetti... O que ele mandar fazer, eu faço! Você não acha, Rosinha?

 

                - Vamos ver na reunião, esta noite. Você precisa saber quem é o Miguetti.

 

                (In: Parque industrial, pp.19-22.)