Verbete organizado
por:

Anselmo Peres Alós

 



Zeli de Oliveira Barbosa

 

Textos:

Ilhota: testemunho de uma vida

 

                Resumo: apresentando um esquema formal que desestabiliza o leitor, jogando-o para um universo diegético onde acontecimentos atropelam acontecimentos com a mesma violência que vizinhos de porta dividem agressões, furtos e solidariedade, Zeli de Oliveira Barbosa descreve o cotidiano dos tempos em que viveu na Ilhota, favela porto-alegrense. O aspecto truncado do texto traduz a vertigem dos acontecimentos cotidianos da favela. No trecho aqui apresentado a escritora fala dessas conturbadas relações com os outros moradores da favela.

 

 

                Fragmento de Ilhota: testemunho de uma vida

 

                No Beco do Conforto tinha uma senhora chamada Elna, que era do tipo avantajado e uma boca suja, brigona e xingona por qualquer. Tinha quatro ou cinco filhos, sendo que esses eram da pior índole, gostavam de maltratar as outras crianças e roubavam tudo que encontram, e assaltavam até crianças, inclusive o meu filho, que na época tinha cinco anos, mandei buscar meio quilo de pão e margarina e sobrava troco. Na volta do armazém, o meu guri já vinha chorando sem nada nas mãos, o pai dele estava parado, conversando na frente do quintal, quando o meu guri chegou e me disse que o seu menino, esse menino era da idade do meu, eu peguei o meu pela mão e fui lá e expliquei pra o pai do menino que ele havia tirado o pão e o troco do meu guri. Sabem o que ele me disse? “Isso são coisas de crianças”, e riu. O que eu poderia dizer diante disto - nada. Imaginem qual o futuro desta criança, o que se podia esperar dela com um pai que achava muito natural um filho de cinco anos roubar, uma mãe que não admitia que se fizesse quaisquer quisca e como eu poderia pensar em deixar que meus filhos brincassem com essas crianças que, sem o saber, estavam caminhando para uma vida futura perigosíssima, um caminho de crime e delinqüência? Eu tinha horror em pensar que meus filhos crescessem neste lugar aprendendo tudo que não prestava, porque por mais que eu fizesse, eles iriam automaticamente aprendendo, porque eles, os meus filhos, quando não estavam na creche ficavam em casa, sozinhos e Deus.

 

Uma vez estando eu trabalhando e bem na época de férias as minhas crianças ficaram sozinhas em casa, mas eu tenho um sentido muito aguçado para as coisas más que me acontecem, por exemplo, já me aconteceu várias vezes, talvez por que eu, sendo mãe de crianças tão pequenas na época e pensando sempre que poderia estar acontecendo alguma coisa a eles, meu espírito estava sempre de sobreaviso.

 

                Estando eu trabalhando, em dado momento comecei a sentir que algo estava acontecendo em casa, pois eu havia deixado as crianças sozinhas, meu menino mais velho tinha seis anos, o outro cinco anos e o outro três e a menina um ano, porque eu deixava a menina com eles, e dizia que já que eles tinham pedido uma menina, eles teriam de cuidá-la senão o pai do céu iria levá-la de volta. Eu deixava água fervida, mamadeira e sopa e eles davam direitinho, mudavam-na, só não tiravam-na da cama, porque eu tinha medo que eles a deixassem cair. O meu menino mais velho se defende na cozinha como um adulto, muitas vezes eu penso que se ele fosse menina, não teria sido tão útil como o é até agora.

 

                Mas voltando ao caso, eu senti que algo não estava normal, tantos que tenho por testemunha uma senhora que trabalhava comigo. E nesse dia ela notou que eu não estava bem, e me perguntou se eu estava me sentindo mal. Cheguei pra ela e disse que achava que havia algo que me avisava que minha crianças estavam em perigo. Daí a pouco eu disse que eu ia terminar a louça que eu estava lavando e ia até em casa, quando aparece meu guri mais velho, dizendo que tinha na minha casa umas tias, mas que ele não conhecia. Aí passei às perguntas, como eram essas tias e que cor elas eram, o meu guri passou a descrevê-las e eu, que já estava com uma leve desconfiança que eu não as conhecia, mandei que ele fosse na frente que logo em seguida eu iria, era só falar com a minha patroa, dizer a ela que voltaria mais tarde.

 

                Não demorou muito a menina, filha da minha patroa, chega do colégio e me diz que o guri estava parado na escada, pois quando eu falei que elas talvez não fossem nada nossa, o mesmo naturalmente ficou com medo, ainda mais que ele tinha me dito que elas tinham tomado o chá que eu deixei para a minha pequena e deitado na minha cama. Aí fui ali na escada e disse que ele fosse que eu já ia. Ele foi, antes dele chegar na praça eu alcancei, ele já vinha voltando com uma mulher desconhecida e era completamente desmemoriada, pois dizia coisas sem nexo.       

 

                Vai dali que comecei a falar com ela calmamente, pois sempre ouvi dizer que com os loucos não se deve teimar e nem contrariar, falei com ela normalmente enquanto íamos indo para casa. Chegando em casa, encontrei minhas crianças brincando no pátio, enquanto que a outra louca, não sei se disse que eram duas, estava sentada na minha cama com minha menina no colo, ela era completamente surda e muda, o pior que eu não sabia como agir pra que elas fossem embora. Ela, a primeira louca me dizia que queria falar com uma tal Geni. Acho que essa tal Geni era da imaginação dela, porque uma mente doentia como aquela nem se lembrava mais onde morava e nem com quem falar.

 

                Comecei a ter uma idéia, chamei uma daquelas mulheres que estavam na frente de casa, e perguntei a uma delas se ela queria ir, pra mim, levar as loucas para fora do meu alcance, pra que elas fossem embora, mas sem despertar suspeita. A Sônia, que era o nome da moça, se prontificou, então eu falei a ela que lhe daria 50 centavos que na época dizíamos 500,00 para ela comprar cigarros. Prontamente ela chegou-se à louca e disse que conhecia a Geni, daí a louca agarrou a outra pela mão e ia indo embora, a surda que estava com a minha guria no colo, não queria largá-la, então eu disse à primeira louca que dissesse à outra que eu iria arrumar a pequena e logo eu a levaria até junto delas. A louca começou a explicar à mulher, em mímica, o que eu tinha falado, daí a outra compreendeu e largou a menina. Olha, eu chorei tanto de alegria como se naquele dia todo, todas as lágrimas, as que foram de tristeza e as que foram de alegria, afluísse aos meus olhos, como se todas as mágoas houvessem se acumulado para somente um dia angustioso e longo e eu depois terminasse feliz, porque poderiam ser loucas furiosas, sabe Deus o que não fariam às crianças, que atrocidades não cometeriam essas criaturas, sem saber o mal que causariam a mim e ao meu marido, não falando nas próprias crianças que estavam sós e indefesas. Jamais me esquecerei que poderia ter sido um desfecho cruel, e Deus não permitiu que tal acontecesse.    

 

                (In: Ilhota: testemunho de uma vida, pp.19-22.)